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Por que o acordo de Alcântara fere a soberania nacional

O Brasil não terá controle sobre as cargas a serem lançadas e poderá virar alvo. Para os participantes do Soberania em Debate, o objetivo dos EUA é a vigilância do Atlântico Sul. Seus termos teriam frustrado alguns segmentos militares.

Foto: Stéphanie Marchuk/Fisenge
Da esq. p/ dir.: Pedro Celestino, Roberto Amaral, jurista e cientista político Jorge Folena (mediador), Carlos Zaratini, Darc Costa

Fonte: SOS Brasil Soberano
 
O Acordo de Salvaguardas Tecnológicas (AST) para permitir aos Estados Unidos realizar lançamentos a partir do Centro Espacial de Alcântara, no Maranhão, não se trata de uma parceria comercial, mas de um meio de submeter o território nacional aos interesses geopolíticos norte-americanos e de impedir o Brasil de desenvolver seu próprio programa espacial. Essa é, em síntese, a avaliação dos participantes do Soberania em Debate promovido pelo SOS Brasil Soberano, no dia 24 de outubro, com a presença do deputado federal Carlos Zaratini (PT-SP), presidente da Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional na Câmara, do ex-ministro de Ciência e Tecnologia Roberto Amaral, do presidente do Clube de Engenharia, Pedro Celestino, e do professor da COPPE/UFRJ, engenheiro Darc Costa. A mediação foi do jurista e cientista político Jorge Folena, integrante do Movimento SOS Brasil Soberano.
 
Uma das maiores preocupações dos debatedores é que não há, no acordo, nenhuma limitação com relação ao uso militar da base pelos EUA, nem a transporte de armas nas cargas dos veículos, que viriam em containers fechados, com inspeção permitida apenas às autoridades norte-americanas. “Os brasileiros não podem fazer nem inspeção visual”, diz Amaral. “Podemos estar entrando num polígono de guerra, porque estamos cedendo a base a um país permanentemente em estado de beligerância.” Para efeito da política, explica ele, “foguete e míssil são a mesma coisa -- o foguete lança uma carga, pode colocar em órbita um satélite, ou napalm, uma ogiva, o que se quiser.”
 
Ao assinar o AST, o ex-ministro acredita que o Brasil renuncia a ser uma potência e um país autônomo, para aceitar “um projeto geopolítico, que começa fora do país e aqui alcança seus operadores”. No acordo de Alcântara, critica, “só o Brasil tem obrigações; o resto são concessões nossas e direitos da parte norte-americana”. Uma sujeição, que, segundo Amaral, “faz parte de um projeto bem estruturado e bem pensado de desconstituição da nacionalidade brasileira, do país. Seria impossível a pauta de Jair Bolsonaro sem esse acordo.”  
 
O AST  (Mensagem nº 208 do Poder Executivo) foi aprovado no Plenário da Câmara dos Deputados, no dia 22 de outubro, mas ainda terá que ser votado no Senado. O acordo prevê o lançamento de foguetes, espaçonaves e satélites que usam tecnologia norte-americana a partir da base, mas impõe várias restrições ao Brasil, entre elas o veto à transferência tecnológica.
 
“Como é possível aprovar um acordo que permita o uso do território nacional para lançamento de artefatos – que poderiam ser ogivas, armas --, sem que, em cada lançamento, se tivesse o conhecimento pleno do que está dentro do foguete, e sem ter acesso à tecnologia ali presente?”, questiona Darc Costa. O professor da Coppe e ex-vice-presidente do BNDES observa, ainda, que “uma política de defesa, em qualquer país, exige uma avançada missilística e controle do espectro eletromagnético, os pontos centrais para uma política de defesa, e a base de Alcântara é muito importante nesses dois elementos”.
 
Poderão ser lançados da base, por exemplo, satélites com objetivo militar para espionar países da América Latina ou para exercer controle sobre o Atlântico Sul, ressalta o deputado Carlos Zaratini. “O controle é totalmente norte-americano, todas as limitações não são para os EUA, mas para o Brasil.”
 
Pedro Celestino teme que, em qualquer conflito militar internacional, o país passe a ser considerado um alvo. “Entregando Alcântara, estamos entrando de graça num conflito que não é nosso – dos EUA com Rússia, China... Não temos nada a ver com isso, devemos manter a posição de independência.”
 
A negociação do acordo teve a participação de brigadeiros da Força Aérea Brasileira (FAB), cujos principais argumentos a favor do acordo, contou o deputado Carlos Zaratini, foram de ordem econômica. “Insistem na versão de que, assinado o acordo, a base vai lançar muitos foguetes, satélites; vai gerar R$ 15 milhões e garantir o desenvolvimento do programa aeroespacial brasileiro, empregos.” Mas os termos aprovados, rebate o parlamentar, “vedam explicitamente o uso dos recursos obtidos pela base para desenvolvimento do nosso programa.”
 
Ou seja, com base no Regime de Controle de Tecnologia de Mísseis (Missile Technology Control Regime - MTCR), assinado por 35 países, o deputado explica que o acordo impede o Brasil de aplicar as receitas no desenvolvimento de nossos próprios veículos lançadores. “Só teremos a base, nem veículo lançador, nem satélite.” Os próprios deputados do Maranhão, afirma Zaratini, teriam reconhecido que eventuais empregos gerados na parceria com os EUA devem se concentram na área de hotelaria, em restaurantes, turismo, para atender funcionários das empresas norte-americanas. Nada de alta tecnologia.
 
Réquiem do programa espacial
O acordo também veta outros acordos com países que não assinaram o MTCR, caso da China – com quem o Brasil já tem um projeto na área espacial --, Israel ou Irã, que têm programas aeroespaciais próprios. “Também exclui países classificados como terroristas, e a gente sabe que o conceito de terrorista dos EUA é muito amplo”, adverte o deputado. “Estamos fazendo não um acordo de salvaguardas tecnológicas, mas de salvaguardas políticas.”
Pedro Celestino, presidente do Clube de Engenharia, observa que, se fosse para gerar receita, o Brasil faria acordo similar ao do Centro Espacial de Kourou, da França – usada entre outros, pela Coreia, em termos estritamente comerciais. “Os EUA jamais lançarão qualquer veículo a partir de Alcântara, o que interessa lá é o controle do Atlântico Sul. O que está em jogo não é o acordo comercial, mas de soberania, por isso somos contra ele.”
 
E por que os EUA não querem que o Brasil tenha seu próprio projeto aeroespacial? “Porque pode afetar sua estratégia política, seus interesses no Atlântico Sul”, responde Amaral. “Ao aceitarmos, estamos renunciando à nossa defesa, ao nosso autoconhecimento, e ao nosso papel na América do Sul.”
 
Um programa espacial para um país com a extensão do Brasil representa comunicações civis e militares, prospecção de solo, controle meteorológico, vigilância de fronteiras – terrestre e marítima.  “Seremos o único país do mundo, com o nosso território e população nessa dimensão, com as nossas fronteiras, nosso índice industrial, que não terá programa espacial”, lamenta Amaral. “Este acordo é o réquiem do nosso programa espacial.”
 
Reações militares
Os lançamentos feitos na base de Alcântara, pela sua posição no eixo do Equador, consomem 30% menos combustível e energia do que aqueles realizados em Cabo Canaveral, na Flórida (EUA), estima Darc Costa. Para ele, “trata-se de uma vantagem econômica, inserida num contexto maior, da soberania”, diz.
 
Uma das raízes da vulnerabilidade brasileira, não opinião dos palestrantes, é a ausência de um projeto nacional de desenvolvimento, que assegurasse autonomia em áreas críticas, como a aeroespacial. Zaratini aponta o deslocamento, já há alguns anos, da chamada elite nacional – setores produtivos e financeiros – do interesse do país. “Há uma crença cada vez maior de que não precisamos ter um projeto de desenvolvimento, que esses setores consideram arcaico; de que o Brasil deve se inserir no mundo globalizado e se subordinar aos interesses dos EUA. E Bolsonaro faz isso de forma clara.”
 
Para o parlamentar, o mesmo movimento identificado nos meios civis das elites, aconteceria nas Forças Armadas. “Os militares de classe média estão extremamente influenciados por essa visão de Brasil inserido no mundo globalizado, subordinado aos EUA. Quem foi lá [no Congresso] tratar desse acordo foram brigadeiros da FAB, que estão convictos de que esse acordo é bom, porque eles não têm uma visão diferenciada do desenvolvimento brasileiro. Se tiverem alguns caças modernos, como no acordo com a Saab, da Suécia, para o KC 390, em linha de produção, está bom. Não enxergam o que é necessário para termos soberania, inclusive do ponto de vista militar. Se enfrentarmos qualquer agressão ao país, especialmente dos EUA, como vamos reagir? Precisamos ter produção e tecnologia nacional para termos autonomia. Isso não está na cabeça nem das elites nem dos militares.”
 
Na opinião do engenheiro Darc Costa, contudo, o posicionamento pró-americano dentro das Forças Armadas não seria hegemônico. “É preciso entender o seguinte: a geopolítica mostra os antagonismos estruturais; conjunturalmente, posso compor até com um antagonista, mas a estrutura sempre prevalece. Essa ideia de que os EUA são parceiros [do Brasil] para sempre não está presente na cabeça dos miliares. Mas há um tempo para tudo debaixo do sol.”
 
Por trás do pensamento militar, Darc Costa acredita que ainda perdura a inspiração do projeto industrial dos anos 30, ou as inclinações nacionalistas da disputa com a Argentina na região do rio da Prata, ou mesmo da questão histórica com os norte-americanos, na parte Norte do continente, relacionada ao acesso pelo Vale do Orinoco e do Madalena, na borda continental do mar Caribenho (para acesso à Amazônia).
 
“Quando se polariza no mundo, como está se polarizando -- ou vocês têm dúvida de que há uma contestação em marcha à hegemonia americana, pela China? --, você busca um lado, mas é um erro”, argumenta. “A melhor posição é de terceiro interessado. Não vejo essa questão de militares alinhados com os EUA. O governo Bolsonaro, sim. Mas acho que está sendo muito frustrante essa aliança: olha o caso da OCDE [que anunciou oficialmente a intenção de apoiar a entrada de Argentina e Romênia, recuando de endosso público feito ao Brasil], e outros casos, inclusive Alcântara. É uma frustração para alguns segmentos da área militar.”
 
Roberto Amaral discorda. Para ele, os militares mantêm “a velha concepção da Escola Superior de Guerra (ESG), da Guerra Fria”, em nome da globalização. Mas o conflito agora mudou, opondo o Ocidente, onde estão os EUA e as nações alinhadas a eles, de um lado; e o Oriente, com Rússia, China, Irã, etc., de outro. “Essa é a estratégia que preside a política econômica”, diz. “E estamos vivendo isso, porque não temos um projeto nacional, o sentimento de coesão nacional, de futuro. Enquanto não tivermos isso, vamos ficar à mercê do que é contingente.”
 
Onde está a mobilização popular?
Para o ex-ministro, “a questão central está na nossa incapacidade de mobilização popular”, o que deveria provocar nos partidos do campo progressista uma avaliação do seu papel. “Com a reforma da Previdência, não tivemos uma greve; estão destruindo a Petrobras aos pedaços, e não há uma greve, nenhuma reação. Estão destruindo a universidade brasileira...”  Segundo ele, as últimas eleições presidenciais não foram apenas um processo republicano clássico de sucessão, mas o início da implantação de um novo regime. “Ainda não definido, mas em curso.”
 
Nesse novo cenário, cresce a concentração de riqueza no país e muitos setores da elite “estão de boca aberta para abocanhar” as estatais ameaçadas de venda e desnacionalização, destaca Zaratini. “Votaram a Lei do Gás, para tirar a Petrobras do setor, e, agora, vamos enfrentar a privatização da Eletrobras, exatamente jogar na mão do capital a possibilidade de ter desenvolvimento no setor elétrico. Isso se reflete no Congresso, com deputados e deputadas sem compromisso com essa visão de desenvolvimento do país. E é difícil esse enfrentamento parlamentar sem a mobilização popular.”
 
O presidente do Clube de Engenharia observou que o Brasil é dos poucos países do mundo com extensão territorial, recursos naturais e população, os três fatores essenciais à possibilidade de ter uma política soberana. “E na questão da base de Alcântara, estamos abrindo mão graciosamente da nossa soberania”, diz Pedro Celestino.
 
A combinação desses atributos não é trivial, destaca o presidente do Clube de Engenharia, lembrando que Canadá e Austrália, embora dotados de grande território e muitos recursos naturais, não têm população em número relevante e, por isso, orbitam em torno de nações mais fortes. Por outro lado, EUA, Rússia, Índia e China, junto com o Brasil, têm os três elementos capazes de exercer sua soberania e relevância no contexto internacional. “O Brasil, neste momento, está abrindo mão não só de influenciar outros países como aceitando se subordinar a interesses de outra potência, no caso, os EUA”, adverte Celestino.
 
“Quando a gente fala em soberania, parece palavra mágica, mas é uma coisa concreta: é o que garante desenvolvimento econômico, tecnológico e social do país”, diz Zaratini. “E o acordo com os EUA em Alcântara é um acordo muito ruim, que atrasa o Brasil.”
 
 
> O Soberania em Debate é um evento do Movimento SOS Brasil Soberano, ação do Sindicato dos Engenheiros no Estado do Rio de Janeiro (Senge RJ), que visa promover discussões e contribuir para a construção de um projeto nacional de desenvolvimento com justiça social e soberania nacional.