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Paradoxos da política de saneamento básico no Brasil

O atual contexto político trouxe mais riscos a um processo político em defesa do saneamento básico. O desmonte dessa construção, porém, teve início com a aposta nas Parceirias Público Privadas (PPPs)

 

Fonte: FASE

Evanildo Barbosa¹

O Brasil passa por uma crise democrática que afeta diversas áreas sociais e direitos conquistados ao longo das três últimas décadas. O saneamento básico, sempre deixado de lado por governos em diferentes níveis, poucos anos antes do impedimento da presidenta Dilma Rousseff, parecia começar a obter avanços, ainda que cercado por contradições. Em 2013, a aprovação do Plano Nacional de Saneamento Básico (PNSB)² foi vista como resultado de muitas lutas e reivindicações para possibilitar mais saúde e qualidade de vida para as atuais e as futuras gerações. Na época, a FASE atuava como membro do Conselho Nacional das Cidades (ConCidades), onde a questão fora debatida. Recentemente, diante das inúmeras preocupações em relação aos rumos que as políticas urbanas estavam tomando, nossa organização renunciou o mandato no Conselho.

O atual contexto político brasileiro trouxe mais riscos a um processo político iniciado com o Pacto Pelo Saneamento Básico: Mais Saúde, Qualidade de Vida e Cidadania, em 2008. O desmonte dessa construção, porém, teve início antes do impedimento de Dilma. Cabe destacar que a disputa em torno do saneamento básico como direito continuaria mesmo sem a recente ruptura democrática, já que corria em paralelo à implementação do Plano a tentativa de privatização do setor via Parcerias Público Privado (PPPs). A emergência do Brasil a um patamar de crescente destaque na economia global provocou alterações substantivas no modus operandi da gestão pública.Em um ambiente irrequieto, com vultosos investimentos públicos em grandes infraestruturas nas cidades, para energia, mineração, lazer e turismo, uma velha tríade já ganhava novos ares: Estado, sociedade e planejamento e gestão urbana se reordenavam, ganhando um padrão perverso. Perverso dado o risco de desconstrução das capacidades de inovação política da chamada ‘sociedade civil participativa brasileira’.

Desde 2011, o governo federal instituiu o Regime Diferenciado de Contratações (RDC, Lei Federal 12.462) para dar respostas a exigências formais e urgências às contratações públicas que ora se apresentavam, tendo tal Regime sido imediatamente regulamentado pelo Decreto nº 7.581, que seria exclusivamente aplicável às licitações e aos contratos necessários no âmbito dos investimentos da Copa das Confederações de 2013, da Copa do Mundo de 2014, dos Jogos Olímpicos e Paraolímpicos de 2016, assim como para as ações constantes do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Em 2012, o uso do RDC foi estendido para licitações e contratos de obras e de serviços de engenharia para os sistemas públicos de ensino, por meio da Lei nº 12.722. O governo brasileiro seguiu, então, ordenando que sistemas públicos fossem repassados à iniciativa privada, dessa vez feita por meio da oferta de uma polêmica modalidade de contratação de obras públicas conhecida por Locação de Ativos. Trata-se de mais uma forma de participação que permite que a empresa a ser contratada construa e arrende determinada instalação física (subestação, linha de transmissão, estação de tratamento de água e esgoto, dentre outros) ao ente público, em prazo contratual definido a priori.

A adoção das PPPs divide opiniões. De um lado, estão aqueles que lhe fazem oposição para não se cogitar qualquer alteração no papel do Estado, notadamente no que diz respeito às prerrogativas e às expectativas que lhe são imputadas de universalização do acesso aos serviços essenciais à população. Qualquer plataforma de reforma urbana pelo direito à cidaderepresenta bem esta posição e expectativa.  Do outro lado, se encontram gestores públicos e corporações empresariais que demandaram, elaboraram e agora aplicam o instrumento PPP. A gestão pública, representada neste particular pela figura do gestor público em exercício, seja federal, estadual ou municipal, realiza por meio do instrumento PPP a maior e mais célere das alianças entre a fome e a vontade de comer. Ou seja, alianças entre o investimento público – que, por sua vez, resulta de uma experiência social coletiva de grande monta sobre a totalidade da riqueza socialmente produzida – e a expertise operacional da qual a iniciativa privada se diz detentora.

E o que é uma PPP? É um contrato administrativo entre o governo e o ente privado, de longo prazo, envolvendo recursos do orçamento público, lastreado pela Lei 11.079/2004. E quais seriam, segundo seus defensores, suas vantagens? Primeiramente, a melhor divisão de riscos entre os setores público e privado. Fala-se muito também na “agilidade do setor privado na construção e na operação de serviços”. Outra vantagem apregoada é que haveria garantia de recursos e de prestação de serviços por bastante tempo, dado que a parte contratada na PPP responsabiliza-se pela prestação durante 20 e 30 anos. No entanto, sabemos que esse ponto de vista empresarial tem destino certo: engatar uma pronta reivindicação ao Estado, não só visando a multiplicação das fontes públicas de financiamento desse tipo de contrato via recursos do Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), da Caixa Econômica Federal, através oferta de debêntures de infraestrutura, assim como via redução de tarifas e outras obrigações fiscais.

O Brasil urbano assiste à emergência de PPPs nos serviços. O uso do instrumento já se faz diversificado, como nos setores de saneamento, mobilidade e gestão. Essa dinâmica alimenta um tipo de padrão perverso na relação Estado, sociedade e planejamento e gestão urbana não só porque há uma movimentação nítida de privatização dos serviços essenciais à vida nas cidades, como também por sugerir  que está em curso uma mudança na natureza e no papel do próprio Estado, o que implicaria na modificação no sentido do que venha a ser daqui pra frente a dimensão do que é “público”.

E o que ainda pode ser defensável sob uma perspectiva do direito à cidade? Não se cogita senão a retomada do papel do Estado na universalização dos serviços e a ampla participação da população na definição e no controle das políticas essenciais à vida, a exemplo do saneamento. No entanto, não se pode fingir que há uma difícil questão nessa ambivalência entre uma expectativa “estadocêntrica” e outra “sociocêntrica”: é que o próprio Estado brasileiro propicia e incrementa as condições objetivas para o aprimoramento desse novo Brasil. Essa tendência pessimista aqui apontada apenas quer designar uma vitória parcial (é o que se espera) de um dado formato neoliberal de globalização do capital sobre as cidades, com imposição de consequências geográficas desiguais sobre a maioria empobrecida. Também quer constatar como real a adoção de um modelo teórico e prático de cidade voltado para aprimorar o empreendedorismo urbano já vigente em larga medida nas administrações públicas no Brasil.

Desde há muitos anos, autores como David Harvey destacam a importância da reestruturação da economia mundial nos anos 1960 e seu significado para compreensão das mudanças próprias do capitalismo nas cidades. Para esse autor, já se constituía evidente o marco de uma relação causal entre as novas formas de produção (do regime fordista-keynesiano para a “acumulação flexível”) e a gestão nas cidades capitalistas (ou seja, as alterações no paradigma do administrativismo para o empresariamento urbano).  Neste particular, Harvey assegurava: “há fortes indícios de que a mudança na política urbana e a guinada para o empresariamento tenham tido um importante papel facilitador na transição do sistema de produção fordista, fortemente dependente de fatores locacionais e respaldado pelo Estado do bem-estar keynesiano, para formas de acumulação flexíveis, muito mais abertas geograficamente e baseadas no mercado”².

Desde aí, a força das transformações globais no capitalismo não só manteve célere a reprodução dos meios materiais e culturais do espaço, matizado pelos interesses econômicos hegemônicos, como encontrou as condições mais dinâmicas para sua reprodução ideológica e material. O exame dessas contradições sobre o modelo urbano vigente no Brasil aponta para a necessidade de novas interpretações também sobre a natureza e a qualidade desses fios de insatisfação social que são observáveis no cotidiano das cidades. A ideia de cidade como uma corporação coletiva pode sim ser explorada no limite de suas contradições para que, em termos do futuro das cidades, possa vir a ser apropriada como uma produção coletiva de nós mesmos. Como crença, quanto maiores a revelação e o enfrentamento dessas contradições, mais se poderá contribuir para a desprivatização da vida.

 

[1] Edição de artigo de Evanildo Barbosa, diretor da FASE, publicado em caderno de trabalho da Waterlat-Gobacit. A publicação debate o tema “água” de diferentes ângulos em diversos países. Baixe gratuitamente o número completo aqui.

[2] (HARVEY, 1996: p. 58)