Decreto entrega ativos, destrói estatais e protege compradores
Às vésperas do feriado, no dia 1º de novembro, Michel Temer baixou o Decreto 9.188/17, que torna fáceis, rápidas e confidenciais as operações de venda de ativos de sociedades de economia mista da administração pública.
Por Verônica Couto - SOS Brasil Soberano
Às vésperas do feriado, no dia 1º de novembro, Michel Temer baixou o Decreto 9.188/17, que torna fáceis, rápidas e confidenciais as operações de venda de ativos de sociedades de economia mista da administração pública – por exemplo, da Petrobras ou do Sistema Eletrobras. Segundo o texto, a venda de ativos agora pode dispensar licitação, ser feita com base no melhor preço ou em qualquer outro parâmetro tido como estratégico e com todas as suas etapas mantidas sob sigilo, a critério da direção da empresa. Para o advogado Jorge Folena, os efeitos da medida serão ainda mais “cruéis” para o país do que os das privatizações da gestão FHC: “Quando um novo governo um dia assumir o país, as empresas públicas só existirão no papel, sem nenhum patrimônio.”
Na prática, o “regime especial de desinvestimento de ativos das sociedades de economia mista”, criado pelo decreto, permite aos compradores adquirirem um ativo sem qualquer risco com relação aos débitos e responsabilidades da empresa. “Por exemplo, o Banerj, ao ser vendido para o Itaú, em 1999, levou o banco de Olavo Setúbal a assumir todo o passivo do Banerj, como sucessor universal”, explica Folena. “Com o decreto de Temer para facilitar o desinvestimento das sociedades de economia mista, os compradores ficam livres daquelas responsabilidades, porque não adquirem a empresa, mas apenas um ou alguns dos seus bens. Restará delas um esqueleto sem capacidade de gerar riqueza ou influenciar em políticas públicas.”
Em um caso concreto, será possível adquirir os postos da BR Distribuidora, sem comprar a empresa, cuja abertura de capital na Bolsa de Valores (ou IPO) foi soliciada pela Petrobras em outubro à Comissão de Valores Mobiliários (CVM). A distribuidora de combustíveis possui mais de 8 mil postos e faturou cerca de R$ 86 bilhões em 2016. O plano de desinvestimento original da Petrobras, que incluía a privatização da BR Distribuidora, foi questionado por ação popular e interrompido por medida cautelar da Justiça. Em março deste ano, o TCU suspendeu a medida, mas impôs novas regras, buscando maior transparência para o processo de venda de ativos. Na ocasião, Adriano Pires, diretor do Centro Brasileiro de Infraestrutura (Cbie), declarou ao Correio Braziliense de 16 de março de 2017: “O processo da BR Distribuidora estava avançado. Terá que voltar atrás. Isso significa que a Petrobras terá que achar dinheiro de outro lugar.”
Um dos objetivos descritos no decreto, que não inclui as empresas do setor financeiro (Banco do Brasil, Caixa, BNDES), é, justamente, “garantir segurança jurídica aos processos de alienação por meio da observância da legislação e das demais normas aplicáveis”. Mas Folena observa que o próprio texto contraria a lei logo no artigo 1º do seu capítulo 1, ao basear o regime especial de desinvestimento na dispensa de licitação prevista na Lei nº 13.303/16 (no art. 29, caput, inciso XVIII), conhecida como Estatuto das Estatais e editada pelo próprio Temer. Segundo o advogado, a dispensa de licitação, no caso desta lei, não se aplica à venda de ativos, como pretende o decreto, mas a bens e serviços relacionados ao objeto social da empresa.
“A lei não autoriza venda de ativos sem licitação, mas apenas a dispensa licitação para a venda e a compra de bens produzidos pelas empresas na sua atividade principal”, diz. “Não há referência para ativos neste dispositivo legal. Por exemplo, a BR Distribuidora não precisa fazer licitação para vender gasolina ou comprar matéria prima para fazer um lubrificante para carros. Coisa bem diferente é a alienação dos seus postos.”
O decreto também dá ao órgão estatutário competente da sociedade de economia mista (por exemplo, sua diretoria-executiva) o poder de “classificar a operação, as suas etapas ou os documentos como sigilosos, desde que a revelação de informações possa gerar prejuízos financeiros para a sociedade de economia mista ou para o ativo objeto da alienação”. As avaliações econômico-financeiras serão por padrão sigilosas, “exceto quando exigida a sua publicidade pela legislação societária em vigor.” Medidas que contrariam, destaca Folena, a exigência de transparência para qualquer operação envolvendo a administração e o patrimônio público.
A apresentação de propostas preliminares no processo poderá ser dispensada a critério da Comissão de Alienação ou da estrutura equivalente. E o critério de escolha do comprador do ativo inclui o valor pago por ele mas também outros elementos, como o porte ou “a capacidade econômico-financeira” do comprador:
“Para fins de seleção da melhor proposta, será utilizado o critério de julgamento de melhor retorno econômico, que será analisado com base no valor da proposta e em outros fatores, tais como responsabilidades e condições comerciais, contratuais, fiscais, trabalhistas, ambientais, entre outros que possam ser reputados relevantes para análise de melhor proposta, desde que devidamente justificado” (artigo 16). “Poderá ser estabelecido, entre outros, o critério de capacidade econômico-financeira como fator de seleção de interessados, de maneira a considerar o valor do ativo e as informações e os dados estratégicos a ele concernentes” (artigo 18, parágrafo 3º).
O regime especial de desinvestimento de ativos das sociedades de economia mista representa “um lance violento contra o patrimônio nacional, e favorece os compradores de ativos, que não terão qualquer responsabilidade nas aquisições realizadas, uma vez que a empresa permanecerá com seu patrimônio reduzido, como um esqueleto”, diz Folena. “Depois quem terá que pagar a conta da irresponsabilidade e da ilegitimidade de Temer será o povo.”