ARTIGO - Sobreviver não é requisito acadêmico: cotas ainda são muito pouco para nós
Nós, mulheres negras, temos como primeiro compromisso a transformação da realidade. O que faremos?
(Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil)
Fonte: Brasil de Fato
Por Pretas em Movimento
Nos dias atuais a população não consegue acompanhar a quantidade de envolvidos em roubos e desvio de dinheiro público brasileiro e poucos são os que se esforçam de maneira hercúlea para dialogar, necessidade vital e diária da vida em sociedade.
Porém, é preciso lembrar que as crises e corrupções são inerentes ao sistema capitalista; por isso nunca nos espantou que não exista um único país no mundo sem históricos de crises e escândalos de corrupção.
Também nunca vimos uma mudança estrutural em benefício da população que tenha acontecido a partir de uma crise econômica, política e social. As crises só pioram a vida da população pobre e negra.
Ademais, as crises sistêmicas incidem em todos os níveis de reprodução da vida, convivemos com tudo: negros racistas, gays homofóbicos, gays que são considerados doentes, pobres com discursos conservadores e contra si. É a sociedade pandemoniosa ensimesmada, na qual poucos se atrevem a saírem de si por medo de olhar o outro e ter que se comprometer. Logo, a vida passa a ser uma existência supérflua, ninguém quer largar seus privilégios mesmo que a partir disto tenhamos uma melhoria maior.
Contudo, não nos abalamos porque nossa organização política é diária e, sim, há pessoas que pensam na transformação da realidade o tempo todo, aquelas que assumem o seu lugar político ansiando um mundo em que todas (TODOS) possam viver com descontração e ter opções na vida. Escolhas estas que nunca existiram para população pobre, somos tolhidos pelo sistema capitalista, sem extrapolarmos este limite dificilmente conseguiremos voar mais alto.
Nós, mulheres negras, temos como primeiro compromisso a transformação da realidade, neste mundo onde os intelectuais estão cada vez mais afastados da vida concreta da população.
Insistentes e estudiosas somos sempre tensionadas a nos afastar deste compromisso a partir de um ativismo que, hoje, está reduzido a pequenas movimentações particulares e pontuais numa teia de redes sociais cibernética e oportunista, mas não desistiremos!
O que faremos? Já perguntava Rosa Luxemburgo. Começaremos por nós; não nos deixando enganar e olhando para a realidade, reagindo aos detentores do poder político e econômico que insistem em permanecer neste chorume que é esfregado todos os dias em nossas caras, potencializando sofrimentos e a exaustão da luta diária. Apesar disso, não nos entregaremos e reagiremos sempre no caminho da revolução que buscamos, aquela que libertará todos os oprimidos.
Partindo desse pressuposto é que nós, as “Pretas em Movimento” nos refletimos no pensamento de Kay Lindsey quando afirmou: “como negras temos obrigação de projetar a revolução”. E por quê? Simplesmente porque não nos foram dadas alternativas. Porque repudiamos a mentalidade de uma sociedade meritocrática que quer nos convencer de que, se uma de nós conseguiu ocupar espaços socialmente elevados, outras por esforço e consequência também ocuparão. Não é verdade! Porque as raízes são as da desigualdade e lacunas sociais e raciais historicamente consolidadas.
E é neste chão que nossos pés fincam! Simbolicamente, quando vemos uma das nossas em lugar social distinto é também uma parte de nós que ali está representada, todavia, isto não basta para responder concretamente aos nossos anseios dentro de uma sociedade que nos silencia. Não! Sobrevivência não é um requisito acadêmico.
Por vezes nos perguntamos por que escolhemos este caminho, daí recordamos da Bell Hooks (que, como nós, teve origem em uma família de trabalhadores pobres) no texto “Intelectuais Negras”; segundo ela, estudar poderia significar qualquer mobilidade social.
Aprendemos a importância de sermos “inteligentes” para nos mantermos vivas, embora curiosamente, mesmo depois de estar em meio ao que entendem como “intelectuais”, poucos querem nos ouvir.
Eles querem falar entre si, nos seus clubes, congressos de pagamento em dólares, resorts acadêmicos onde discutem seus objetos de estudo. Mesmo sem entender nada, para nós, oriundas de famílias operárias, o trabalho intelectual nunca foi pensado divorciado da vida, da falta de professores, dos salários em atraso dos nossos pais, das contas inflacionadas em determinadas épocas políticas.
A vida era e sempre será política. E foi esta compreensão que nos permitiu continuar estudando, encarando a crítica como uma forma de luta, sem nos afastarmos dos nossos e da nossa comunidade e assim verdadeiramente entendendo o sentido de tudo.
Como negras e acadêmicas acabamos por praticar aquilo que Conceição Evaristo chama de “escrevivência”, quando a vivência é o principal alimento da escrita. Nessa perspectiva, não há como separar produção científica da militância, nosso conhecimento é ação. Para além dos circos egóicos academicistas, as discussões sobre a condição social da população negra e o ciclo cumulativo de desvantagens que cerceiam suas oportunidades e realizações, por exemplo, é para nós uma questão existencial e política. Acreditamos na importância de uma ciência de caráter pragmático, em ato, isto é, “em mangas de camisa” - como defendeu o sociólogo Guerreiro Ramos - que tenha capacidade de promover transformações na realidade social.
Nossos passos vêm de longe, estamos lutando por sobrevivência e queremos mudar a história, não somente a nossa, mas a do mundo com suas injustiças que perpetuam diariamente. No contexto em que vivemos, políticas públicas de ações afirmativas são imprescindíveis. As cotas raciais e sociais, por exemplo, têm impactado positivamente a vida de muitos jovens em situação de vulnerabilidade, configurando-se, assim, como um importante começo. É preciso considerar, porém, que em termos concretos, a política de cotas não significa plenamente uma porta aberta, mas sim um caminho mais pavimentado para aqueles e aquelas que contrariam todas as estatísticas, inclusive conseguiram permanecer vivos até a idade universitária. Há muito a ser feito e as mudanças precisam ser estruturais.
E é essa nossa motivação no mundo acadêmico, fazermos pesquisas compreendendo a profundidade social, levantando a voz mediante as injustiças com os povos oprimidos. Como acadêmicas negras continuamos convivendo com o racismo e o machismo, logo, os nossos desafios e responsabilidades na ocupação dos diferentes espaços são elevados. Portanto, consideramos que o envolvimento das intelectuais nas projeções e lutas sociais é quase obrigatório. Obrigatório no sentido de não negação de nossas origens, convicções e conhecimentos que devem (ou deveriam) ser úteis para a compreensão do mundo. Foi a partir disto que resolvemos escrever juntas, porque temos um posicionamento e lutamos do mesmo lado desta trincheira.
*Cláudia Cambraia - Jornalista, Doutoranda em Ciências da Comunicação FCSH/UNL; Elaine Santos - Socióloga, Doutoranda em Sociologia no Centro de Estudos Socias; Jessica Fernandez – Doutoranda no ISEG – Universidade de Lisboa e Mariana Panta - Doutoranda em Ciências Sociais na UNESP/Marília, estágio de doutoramento no CES da Universidade de Coimbra.