Sem integração regional, países sulamericanos serão submetidos a neocolonialismo verde
Reunindo os países proprietários da maior parte das jazidas de minerais estratégicos para a descarbonização da indústria mundial, América Latina pode sofrer exploração desenfreada. E arcará com as pesadas consequências disso.
De um lado, Estados Unidos, União Europeia e China concentram seus esforços na transição das energias fósseis para as renováveis com estratégias de descarbonização que dependem diretamente de minérios estratégicos para a produção de motores elétricos, baterias e placas fotovoltaicas. Do outro lado, América Latina, África e Austrália, donas da maioria das reservas minerais, enfrentam o risco de um processo extrativista desenfreado, com a contaminação do solo, dos recursos hídricos e do ar. A conta não fecha: com a reprodução da lógica que nos trouxe até aqui, não há saída possível para a crise climática.
“Levado às últimas consequências, da forma com que está colocado, esse processo causará uma devastação colossal na base produtiva e extrativa para suprir a enorme demanda mundial por minerais estratégicos. As perspectivas em termos ambientais e sociais são terríveis”. O alerta é da professora Monica Bruckmann, do Departamento de Ciência Política e do Programa de Pós-Graduação de História Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), convidada do Soberania em Debate do dia 17/08.
O avanço da indústria automobilística nos últimos anos apresenta um desenho claro do que esperar para as próximas décadas. O Pacto Verde Europeu, o Green New Deal, os esforços coordenados da China, ou qualquer outra estratégia para a transição energética, preveem a transformação do parque automotivo mundial, com a substituição de veículos convencionais por carros elétricos.O processo já está em curso: de alguns milhares de veículos elétricos no mundo em 2010, saltamos para 12 milhões em 2019 e, em 2022 alcançamos os 25 milhões de veículos elétricos no planeta.
“Algumas regiões, como a China, preveem que, até 2030, a maior parte de sua frota será elétrica. Para o mesmo ano, a União Europeia projeta a substituição completa. Esses 25 milhões de carros elétricos representam apenas 1,8% do parque automotivo mundial, que conta com cerca de 150 milhões de veículos”, aponta Bruckmann.
Contexto estratégico único
Para atender a essa demanda gigantesca, será necessária uma extração cada vez mais intensa dos minerais que compõem a base da indústria verde. Para efeito de comparação, um motor comum, movido a energia fóssil, de um carro de passeio, pesa em torno de 40 Kg. Já os motores elétricos pesam cerca de 200 Kg. Deste total, 100 kg são de Cobre, 10 Kg são de Lítio e 20 Kg são de Níquel. Segundo Bruckmann, trata-se de um aumento gigantesco na utilização desses minérios. “Para garantir o fluxo de energia nas cidades, nas indústrias e no transporte, será necessário um sistema de armazenamento robusto e, para alcançá-lo, faremos um consumo intensivo desse pacote de minérios estratégicos”, aponta a professora.
Neste contexto, os países da América Latina, África e Austrália serão fundamentais para fornecer matéria prima a esse novo mercado de baixo carbono que nasce, teoricamente, para garantir a sustentação da vida no planeta. Peru, Chile e México concentram, juntos, 43% do cobre mundial. O Brasil tem a segunda maior reserva de Níquel do planeta, correspondente a 18% do recurso no mundo. A América do Sul concentra 72% das reservas mundiais de Lítio.
Integração intrarregional urgente
O que está em jogo neste momento não é se estaremos diretamente envolvidos nas estratégias industriais de descarbonização, mas como estaremos. Sem uma coordenação intrarregional, com marcos normativos e regulatórios comuns, falta força geopolítica para quebrar o ciclo explicado pela Lógica da Dependência, formulação teórica desenvolvida por intelectuais como Ruy Mauro Marini, Theotonio dos Santos, Vania Bambirra, entre outros.
“Nossa região se insere no sistema mundial subordinada ao processo de acumulação dos países centrais. Historicamente, essa divisão internacional do trabalho nos coloca no papel de exportadores de matéria prima, com o menor valor agregado possível, para os países que avançam em sua industrialização. Isso é defendido até hoje como condição para alcançarmos uma governança mundial. Sabemos o quanto esse processo extrapolou a pobreza, impediu o exercício soberano da gestão das nossas economias e outras visões possíveis de futuro e desenvolvimento. Se continuarmos sob essa lógica, enfrentaremos mais processos de devastação que produzem, além da contaminação de biomas, a expulsão de populações camponesas e indígenas e o adensamento da população urbana em posição de miséria”, aponta Monica.
Essa condição de países primário-exportadores apontada pela professora foi aprofundada nos últimos anos, mesmo com a primeira onda progressista na América Latina. O caso da China é emblemático: em 2004, quando o país já se posicionava como um grande demandante de recursos naturais, cerca de 38% das exportações da América Latina estavam no comércio com a potência oriental. Apenas quatro anos depois, em 2008, 70% das exportações sulamericanas estavam concentradas na China.
“Não há outro nome para isso: é uma reprimarização das nossas exportações. Ela veio acompanhada de um profundo processo de desindustrialização do país. A Petrobras, por exemplo, produzia praticamente todos os derivados de petróleo para o consumo interno brasileiro. Com a chegada de Temer ao poder, cumprindo compromissos com setores dominantes naquele momento, dispositivos legais retiraram fortemente a participação da Petrobras no pré-sal brasileiro. De país autosuficiente, passamos a importar praticamente 50% dos derivados de petróleo para consumo interno”, destaca Bruckmann.
PAC precisa avançar
A recém lançada terceira fase do Programa de Aceleração do Crescimento prevê o investimento de R$ 280 milhões em pesquisa mineral para prospecção e avaliação do solo brasileiro. Para Bruckmann, no que diz respeito à transição energética, as ações previstas pelo programa são insuficientes. “É importante que o Brasil tenha recursos substanciais para a prospecção mineral, mas também precisamos ter verbas em pesquisa científica e tecnológica para o desenvolvimento de novos processos para a atividade extrativa que busquem um menor impacto ambiental. Este deveria ser um compromisso colocado na agenda global, já que os impactos da mineração podem não afetar os Estados Unidos e a União Europeia em um primeiro momento, mas destruirão importantes biomas de captura de gases do efeito estufa, afetando o mundo como um todo”, pontua a professora.
Mais uma vez, o esforço coordenado de toda a região se faz necessário: ainda que o Brasil, de forma soberana, imponha limites às tecnologias empregadas nas atividades extrativas e de transformação, o uso desses processos poluentes em países vizinhos impediria a adoção de novas tecnologias limpas. Bruckmann destaca, ainda, que práticas de extração mineral amplamente utilizadas na América Latina já foram banidas nos Estados Unidos e União Europeia.
A saída pelo fortalecimento regional
Um exemplo dos resultados do reforço de blocos formados por países na busca da cooperação intrarregional e de suas soberanias nacionais vem da África. Com um grave impacto ambiental acumulado, destacadamente, desde a última década do século XX, uma nova visão panafricana tem feito a diferença nas mesas de negociação com a China. A consciência sobre a importância de instrumentos soberanos para a gestão de recursos naturais tem garantido investimentos chineses em tecnologias para a transformação desses produtos em território africano.
A América do Sul já fez uma tentativa nesse sentido. Em 2012, a União das Nações Sulamericanas apresentou uma proposta histórica para que os 12 países que formavam o bloco avançassem em uma estratégia comum de aproveitamento de recursos naturais. Com quatro eixos, o projeto previa uma gestão econômica capaz de inferir diretamente nos preços das matérias primas; uma gestão científica e tecnológica que promovesse não só a inovação para processos de industrialização intrarregionais, mas também a possibilidade de criarmos colaborações científicas entre os países da América do Sul e com grandes projetos científicos do mundo; uma gestão ambiental unificada, com foco na diminuição dos impactos ambientais das atividades extrativas e uma gestão social para que comunidades impactadas pela exploração de recursos naturais pudessem participar de alguma forma nas tomadas de decisões.
O projeto em quatro eixos não avançou, barrado por uma forte oposição do setor extrativo privado representado por grandes transnacionais da mineração que operam em planos coordenados com setores dominantes de cada um dos países onde atuam. Um novo plano, segundo a professora, é urgente: “Lula e o PAC trazem uma proposta necessária, que deve ser colocada para debate e análise da sociedade civil, para que ela participe ativamente dos mecanismos que devem ser criados. É um avanço no sentido de recuperar as bases mínimas para um projeto de desenvolvimento nacional e de reindustrialização, fundamental neste momento.Este desenvolvimento não será apenas do Brasil, na medida em que seus efeitos começarão a contagiar e impactar a relação com os países vizinhos em processos virtuosos de colaboração e cooperação. Esses países já possuem esses mecanismos, que serão aprofundados em um outro contexto com, por exemplo, cadeias de valor regionais, que são absolutamente corriqueiras em qualquer região do mundo, mas que a nossa abandonou graças à perpetuação dessa mentalidade neocolonial”, finaliza.
Foto: Governo de São Paulo / Flickr