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“O que melhora a água é saneamento, não privatização”

Clovis Nascimento, presidente da Fisenge, criticou proposta de concessão da Cedae e lembrou que as privatizações no setor não trouxeram melhorias. Ele defende investimento público em saneamento nos municípios da Bacia do Guandu

A proposta de privatização da Cedae, em consulta pública até o dia 8 de julho, baseia-se em várias premissas falsas — entre elas a fantasia de que haverá investimento privado para universalizar os serviços de saneamento básico e melhorar a qualidade da água, alerta o presidente da Federação Interestadual de Sindicatos de Engenheiros (Fisenge), Clovis Nascimento (foto). “Neste ano em que se completa uma década desde que a ONU reconheceu a água como direito humano fundamental e bem essencial à vida — que paradoxo! –, querem a sua privatização.”

No modelo preliminar elaborado pelo BNDES para a Cedae, o Estado continua responsável pela captação e o tratamento da água, parte de maior custo e risco da operação, enquanto o setor privado assumiria a distribuição. Nos lugares em que já aconteceu, diz Clovis, a privatização mostrou que não houve interesse empresarial em atender às regiões de menor potencial de lucro. O presidente da Fisenge participou do Soberania em Debate no último dia 12, com o advogado e cientista Jorge Folena, numa realização do Movimento SOS Brasil Soberano, iniciativa do Sindicato dos Engenheiros no Estado do Rio de Janeiro (Senge RJ).

“O que vai melhorar a água é sanear a Bacia do rio Guandu”, afirma o dirigente, também vice-presidente do Senge RJ. “É preciso fazer o esgotamento sanitário em Nova Iguaçu, Queimados, todos os municípios da Baixada Fluminense que compõem a bacia hidrográfica, formada ainda pelo rio Ipiranga, rio Queimados, além do próprio Guandu.” Aos que mencionam a chamada “crise da geosmina” (que deixou a água escura e com cheiro ruim no início do ano) para tentar justificar a privatização, ele informa que aquela foi uma crise “arranjada” para desmoralizar a empresa, derivada de má gestão.

Além disso, o projeto de concessão da Cedae prevê quatro blocos ou áreas de atuação privada, que ficaria responsável pela distribuição, mas mantém o Estado na captação e no tratamento da água. “A solução definitiva para a água é o saneamento, a coleta, o transporte e a destinação adequada do esgoto”, diz Clovis. “Não tem privatização que vá resolver isso.”  Laudo recente da UFRJ atribuiu os problemas na qualidade da água em regiões do Rio de Janeiro, detectados em março, à presença de esgoto doméstico e poluição industrial.

Só no filé
O presidente da Fisenge lembra que Manaus (AM) é atendida pelo setor privado há mais de 20 anos, e 88% da população da cidade não têm acesso a esgotamento sanitário, e metade, à água potável. Em Tocantins, onde a Saneatins foi vendida na mesma época, a BRK assumiu a gestão dos serviços de saneamento básico, mas “devolveu” ao Estado cerca de 78 municípios considerados deficitários para a empresa. “A iniciativa privada ficou só com o filé”, critica Clovis. “Opera apenas os 47 municípios mais rentáveis. Isso é rasgar a fantasia, porque a iniciativa privada diz quer a privatização, mas na verdade não quer atender à população pobre.”

No Brasil, segundo o dirigente, são 33 milhões de brasileiros, ou quase 16% da população, sem acesso à rede pública de água potável. Estão principalmente nas favelas, nos bolsões de pobreza, nos subúrbios, áreas periféricas e zona rural. “Essas áreas são deficitárias e não interessam à iniciativa privada. Em nenhum setor que foi privatizado, colocaram dinheiro novo. No metrô, costumo dizer que privatizaram a roleta.”

Estatal, a Cedae, no entanto, já atende a 88,4% da população urbana dos 64 municípios do Estado com água encanada, e transferiu R$ 1 bilhão para o governo do estado nos últimos dez anos. Ou seja, explica Clovis, a empresa é autossustentável, saudável financeiramente e com capacidade de investimento. A questão é o interesse público do governante. Nesse sentido, ele conta que mil litros de água potável têm um custo de R$ 2,50, que, somado a outros gastos administrativos e logísticos, resulta em uma tarifa de R$ 3,90. Em qualquer padaria ou loja, contudo, dificilmente meio litro de água mineral sairá por menos de R$ 5,00.

Atribuição constitucional
A concessão da Cedae ao setor privado foi uma exigência do governo federal para a adesão do Rio de Janeiro ao Regime de Recuperação Fiscal proposto pela União em 2017. E depende também de o governo conseguir aprovar o novo marco legal do saneamento básico (PL 4162), em tramitação no Senado, que quer acabar com os subsídios cruzados e favorecer a privatização das empresas estaduais e municipais do setor. Ambas as iniciativas, na avaliação do dirigente da Fisenge, desrespeitam a Constituição.

Água e saneamento são serviços historicamente vocacionados para o poder público, lembra Clovis. A Constituição de 1988, no seu artigo 30, inciso 5, estabelece que serviços de interesse local são de competência e titularidade municipal, o que inclui água, esgoto, resíduos sólidos e drenagem urbana. No caso do Guandu, a maior estação de tratamento de água do mundo, atendendo a toda a Região Metropolitana do Rio, o Supremo Tribunal Federal (STF) definiu que a titularidade seria compartilhada entre estado e municípios. No mais, todo serviço de saneamento tem titularidade municipal. “Sem autorização do prefeito, não pode privatizar o saneamento”, avisa Clovis.

O fato de a Cedae ter sido dada como garantia em empréstimo do Estado com o governo federal “não muda nada”, na sua avaliação. “A tentativa de federalização da empresa também esbarra na titularidade municipal.” Além disso, Clovis ressalta que o contexto político, com o governo ameaçado de impeachment, sob pressão, em meio a uma pandemia sem coordenação em que a água tem um papel crucial para evitar o contágio, deve dificultar bastante a tentativa de privatização, pelo menos até o final deste ano. A própria modelagem do BNDES toma por base o novo marco legal do saneamento, que ainda não passou.

A solução para universalizar o acesso à água, sanear as bacias, ampliar a rede do esgotamento sanitário, diz o presidente do Fisenge, envolve basicamente investimento público para abrir vala, instalar tubulações…Recursos que iriam movimentar a cadeia produtiva de pequenas e médias empresas, gerar empregos. Uma ação, contudo, improvável sem a derrubada da Emenda Constitucional 95, do teto dos gastos, afirma Clovis.

> O Soberania em Debate é uma realização do Movimento SOS Brasil Soberano, iniciativa do Sindicato dos Engenheiros no Estado do Rio de Janeiro (Senge RJ), que tem o objetivo de recolher subsídios para a construção colaborativa de um projeto de desenvolvimento nacional com empregos, soberania e justiça social.

Clique para assistir na íntegra o Soberania em Debate sobre A privatização da água e a Covid-19

Aqui, artigo de Ana Lucia Britto, professora da UFRJ e integrante do ONDAS, e Clovis Nascimento, presidente da Fisenge, sobre o processo de privatização da CEDAE