O cenário perigoso da privatização da Dataprev e do Serpro
A captura da infraestrutura de dados do país serve à indução de consumo, à invasão de privacidade e à manipulação política, afirmam o ex-presidente da Dataprev, Rodrigo Assumpção, Celio Stembach, da Fenadados, e Leo Santuchi, da Aned.
A perspectiva de privatização da Dataprev e do Serpro é alarmante para a privacidade dos cidadãos brasileiros e para a capacidade do Estado de realizar políticas públicas. O que está em jogo é o controle das maiores bases de dados do país, com informações de toda a natureza sobre pessoas físicas e jurídicas. Um ativo que serve à indução de consumo, a análises de risco na contratação de serviços ou em relações de trabalho – por exemplo, por bancos, seguradoras e departamentos de RH, e ao aproveitamento político-eleitoral. Sem falar nos contratos vigentes, com grandes órgãos públicos.
A advertência foi feita em debate promovido pelo Sindicato dos Engenheiros no Estado do Rio de Janeiro (Senge RJ), que contou com o ex-presidente da Dataprev Rodrigo Assumpção; Celio Stembach,diretor da Federação Nacional dos Empregados em Empresas e Órgãos Públicos e Privados de Processamento de Dados, Serviços de Informática e Similares (Fenadados) e do Sindpd-RJ, sindicato da categoria; e de Leo Santuchi, presidente da Associação Nacional dos Empregados da Dataprev (Aned).
Embora a venda das empresas ainda não tenha cronograma definido, o seu desmonte já começou. Este ano, foram fechadas 20 regionais da Dataprev, informa Célio. “É o sucateamento para privatizar. Não investe e começa a dizer para a população que o serviço é ruim ou caro.”
Segundo Santuchi, da Aned, foi um processo “desumano”. "Esperaram a passagem do Ano Novo, felicitaram os trabalhadores, e lançaram o Programa de Adequação ao Quadro (PAQ) . A opção era assinar ou demissão. Fizemos a greve vitoriosa e, após o dissidio no TST, salvaram-se os funcionários não aposentados que não tinham assinado o programa, para o INSS; e os aposentados em atividade, com opção de transferência às suas expensas, ou assinavam o PAQ ou conseguiam cessão para outros órgãos públicos." Ele conta que o trabalho foi "duro, muito árduo". A entidade enviou mais de 200 ofícios, tentando realocar pessoal, mas apenas dez conseguiram vagas.
“As pessoas não estão entendendo o quão perigoso e desastroso é a privatização de uma empresa como a Dataprev ou o Serpro”, ressaltou Rodrigo Assumpção, atualmente consultor da Organização Internacional do Trabalho (OIT) para modernização de entidades de previdência social. “Os países estão construindo sua nova infraestrutura, e ela passa por dados. Da mesma maneira que, no século 16, montamos portos; no século 18, ferrovias; no 19, ferrovias e rodovias, e começamos as redes de telecomunicações, agora, a infraestrutura que todos estão montando é a infraestrutura de dados”.
Nesse esforço, o Brasil é um dos mais avançados, avalia Assumpção. Ele cita, por exemplo, a velocidade, cerca de duas ou três semanas, com que o país conseguiu processar e mandar pagar mais de 67 milhões debenefícios emergenciais da pandemia de Covid-19. Um desafio só possível com o Serpro e a Dataprev, que, junto com a Caixa, fizeram o cruzamento de mais de 24 bases gigantescas.“Com todas as críticas que a gente possa ter, foi um feito extraordinário. E está sendo estudado no mundo inteiro”, diz Assumpção. “Do ponto de vista da engenharia de computação, é um feito imenso, que não se discute como capacidade operacional do Estado.”
Abrir mão da capacidade de governar
O desastroso na privatização, explica o ex-presidente da Dataprev, é não só oferecer esses dados para a iniciativa privada, mas tirar da mão do Estado, da sociedade, a capacidade de trabalhar essas informações, fundamentais para a execução de política pública – social, fiscal, administrativa. “Não ter essa capacidade significa abrir mão de governar, de executar política social. E de certa maneira, a proposta talvez seja essa."
E por que as empresas querem a Dataprev e o Serpro? No caso da Dataprev, Assumpção aponta três principais elementos de valor, que despertam a cobiça do mercado. O principal e mais importante são os próprios dados; depois, os grandes contratos com o governo, em situação de quase monopólio; e, finalmente, os ativos físicos da empresa.
A Dataprev tem a guarda de dados relativos a mais de 33 bilhões de brasileiros. É difícil avaliar o valor dessas informações, mas já se pode observar algumas movimentações no mercado em direção a dados públicos. Assumpção destaca dois exemplos na cidade de São Paulo, que apontam o potencial desse jogo. O primeiro foi o caso da licitação da prefeitura para coleta de lixo corporativo. A empresa vencedora construiu um aplicativo, onde todos precisavam detalhar seus lixos, com endereço, se é industrial, etc., para organizar a coleta. Assim que essa estrutura de dados ficou pronta, a empresa começou a comercializar a lista e percebeu-se que essas informações rendiam muito mais do que o contrato licitado.
O mesmo acontece com os aplicativos para gerenciar estacionamento em Zona Azul, que o governo de São Paulo gosta de dizer que são uma doação, mas que geram uma enorme riqueza de dados sobre mobilidade, consumo, processos de densificação dos bairros, um fator extremamente relevante tanto para planejamento urbano, cidades inteligentes, quanto para venda direta, para quem quiser organizar seu mercado.“Quando se começa a discutir uberização, passa a haver um valor, o controle do direcionamento do público comprador”, explica Assumpção. “Imagina que isso tudo pode estar na mão da iniciativa privada, quando o governo mal começou a aprender a regulamentar o dado pessoal, de primeiro nível, de identificação do indivíduo. No agrupamento desse dado com outros, construindo informações de segundo e terceiro níveis, a identificação nem é mais necessária. Basta saber que alguém, seja quem for, tem determinados hábitos de consumo,c ircula por tais lugares. Isso tem um valor extraordinário.”
Monopólio e contratos de longa duração
O segundo patrimônio atrativo da Dataprev é a sua grande carteira de contratos com clientes governamentais, de longo prazo e alto valor, aponta Assumpção. O mesmo no caso do Serpro. Embora não exista um monopólio legal, há um monopólio de fato: os serviços relacionados a dados na área social são prestados pela Dataprev; e aqueles da área fiscal e econômica, pelo Serpro. A predominância se explica pela estrutura construída por essas empresas em décadas de existência, e também, porque, estatais, não interrompem o fornecimento do serviço, mesmo em casos de atrasos dos clientes nos pagamentos. São uma garantia de continuidade das políticas públicas.
Esses contratos têm longa duração – 10, até 20 anos --, e serão firmados entre o Estado e quem compre Serpro e Dataprev. “Não há previsão legal para isso”, diz Assumpção. “Os mais longos [nas licitações] precisam ter cinco anos. E ninguém explicou se, quem levar a empresa, vai levar esse quase monopólio. Ninguém documentou ou estruturou a legalidade disso. É uma das coisas obscuras: pode acontecer de os contratos ficarem sendo renovados por falta de lei, na mão de alguém.
”Finalmente,embora menos valioso, mas ainda sim estratégico, há o patrimônio físico da Dataprev: três datacenters com certificação operacional Tier 3, um selo internacional para ambientes de alta segurança e performance; uma quantidade gigantesca de máquinas, software, equipamentos, prédios em várias cidades do país.“Privatizar Serpro e Dataprev é entregar os dados dos brasileiros ao capital especulativo”, critica Célio, da Fenadados. “Quando entrega o Serpro, está entregando o CPF de todos os brasileiros. Alguns exemplos de dados que estão com o Serpro: CPF, CNPJ, operações decomércio exterior, Imposto de Renda. Estamos falando de casa, de renda, de barco, conta-corrente, bilhões de informações. Quem comprar a Dataprev vai ter todos os seus dados de auxílio-doença. Na hora de contratar, as empresas poderão saber toda a vida do trabalhador.”
Outro problema é a tentativa de acabar com os concursos públicos, privatizando as empresas. Celio lembra que, antes da Constituição de 1988, senadores, deputados, podiam requisitar dezenas de vagas para atender trocas políticas. “Todas as empresas públicas são importantes para a soberania nacional e a política de Estado”.
Para Assumpção, como vamos nos organizar para mobilizar a capacidade do Estado brasileiro de ter, gerenciar e utilizar uma infraestrutura de dados é ainda mais importante do que a infraestrutura física de portos, de linhas de telecomunicações, oleodutos. A própria Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico(OCDE), no estudo "A Caminho da Era Digital no Brasil", criticou a intenção do governo de privatizar a Dataprev e Serpro. A entidade alerta para a possibilidade de os titulares dos dados, ou seja, os cidadãos brasileiros, perderem o controle de suas informações pessoais – cedidas originalmente ao Estado --, que poderiam ser aproveitadas para propósitos comerciais.
A Aned vai lançar uma campanha e acionar uma assessoria parlamentar contra a privatização da Dataprev e do Serpro. A intenção é mobilizar trabalhadores das duas empresas, a Fenadados, sindicatos, CIPA, outras representações dos trabalhadores e da sociedade civil. "Vamos vencer", diz Santuchi.
Assista à íntegra do debate:
https://www.youtube.com/watch?v=Dzdhe1LaRo4
Foto: Datacenter da Dataprev no Rio de Janeiro/divulgação