Minha Casa, Minha Vida: urbanização sem cidade
Confira a entrevista com a cinentista política Francini Hirata ao IHU
Fonte: IHU
O programa Minha Casa, Minha Vida, do governo federal, surgiu em 2009 com o objetivo de reduzir o déficit habitacional no Brasil. No entanto, a pesquisadora Francini Hirata afirma que não estão sendo priorizadas as famílias com renda familiar de 0 a 3 salários mínimos, que é a faixa onde se concentra 90% do déficit habitacional. Na entrevista a seguir, concedida por e-mail para a IHU On-Line, ela explica que houve avanços em termos de construções de unidades habitacionais, mas é preciso deixar aqui a armadilha dos cálculos meramente econômicos e quantitativos. “Se os últimos relatórios apontam a entrega de quase um milhão de moradias, é preciso sublinhar, em contrapartida, a morosidade na entrega para as famílias com renda de até R$ 1,6 mil mensais – faixa onde se concentra o déficit habitacional – além do fato de haver uma concentração dessa entrega nas faixas de maior renda. A partir de dados veiculados pela Caixa Federal até junho de 2012, somente 44% das unidades contratadas foram entregues para esta faixa de renda, número que chega a 69% para a faixa de renda entre R$ 1,6 mil e R$ 5 mil mensais. Se compararmos as obras a partir de outubro de 2011, segunda fase do programa, os dados são alarmantes: 1,9% de unidades contratadas foram entregues para a faixa de renda de R$ 1,6 mil contra 50% na faixa entre R$ 1,6 mil e R$ 5 mil mensais, o que corresponde a 4.475 unidades contra 267.453”.
E ela continua: “o programa é, assim, parte da contribuição do poder público para a consolidação do padrão periférico de urbanização, através da construção de grandes conjuntos habitacionais nas periferias metropolitanas sem proporcionar a infraestrutura necessária, constituindo a chamada ‘urbanização sem cidade’, ou seja, a instalação de conjuntos habitacionais em áreas distantes e desarticuladas do conjunto estruturado da cidade, com inexistência ou insuficiência de transporte público e saneamento, perpetuando as características do território segregado”.
Francini Hirata é mestre em Ciência Política pela Unicamp e bacharel em Ciências Econômicas pela Unesp.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Fazendo uma retrospectiva do programa Minha Casa, Minha Vida desde seu surgimento, em que sentido ele mais impactou na sociedade brasileira? Quais os benefícios que ele trouxe e para quem?
Francini Hirata – Houve avanços em termos de construções de unidades habitacionais, mas é preciso deixar aqui a armadilha dos cálculos meramente econômicos e quantitativos. Se os últimos relatórios apontam a entrega de quase um milhão de moradias, é preciso sublinhar, em contrapartida, a morosidade na entrega para as famílias com renda de até R$ 1,6 mil mensais – faixa onde se concentra o déficit habitacional – além do fato de haver uma concentração dessa entrega nas faixas de maior renda. A partir de dados veiculados pela Caixa Federal até junho de 2012, somente 44% das unidades contratadas foram entregues para esta faixa de renda, número que chega a 69% para a faixa de renda entre R$ 1,6 mil e R$ 5 mil mensais. Se compararmos as obras a partir de outubro de 2011, segunda fase do programa, os dados são alarmantes: 1,9% de unidades contratadas foram entregues para a faixa de renda de R$ 1,6 mil contra 50% na faixa entre R$ 1,6 mil e R$ 5 mil mensais, o que corresponde a 4.475 unidades contra 267.453.
Para a população com renda acima de 3 salários mínimos, o impacto do plano foi mais positivo, tendo em vista que uma política de acesso a crédito sozinha já é capaz de contribuir para a aquisição da moradia.
Entretanto, quem mais ganhou com o programa foram os proprietários de terras e a especulação imobiliária. A partir do momento do anúncio do programa, ocorreu quase que imediatamente uma elevação escandalosa dos preços dos imóveis e da terra em todo o país. Os recursos privados e públicos não foram disponibilizados concomitantemente à democratização do acesso à terra. Sendo assim, os subsídios foram absorvidos pela alta dos preços dos terrenos, já que não foram condicionados à adoção de políticas fundiárias que pudessem combater este aumento.
Quais as limitações e lacunas do programa?
Se partirmos do pressuposto de que construir moradias é construir cidades, ou seja, que é preciso discutir os impactos dos empreendimentos imobiliários nas condições de vida dos cidadãos, é possível dizer que o plano desconsidera as diferentes relações de forças envolvidas nos níveis federal, estadual e municipal, a participação diferenciada dos agentes na sua implementação e os diferentes interesses em disputa.
Quero dizer com isso que não se priorizou a provisão de habitação para as faixas de renda que compõem o déficit habitacional, além de não estabelecer mecanismos de regularização fundiária, instauração do IPTU progressivo e desapropriação do imóvel que descumprir sua função social. Instrumentos que até já estão previstos e consolidados nos próprios planos diretores dos municípios, no Estatuto da Cidade e no Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social (FNHIS). Esses instrumentos, construídos com ampla participação dos movimentos populares, foram ignorados pelo programa.
Na maioria das cidades do país tem sido praticamente impossível que a população de renda mais baixa tenha a casa construída nas áreas não periféricas, que apresentam infraestrutura consolidada e oportunidades de trabalho. Isio porque estas regiões apresentam o metro quadrado muito mais caro. É onde também, na maior parte das grandes cidades, é considerável o número de imóveis vazios e abandonados – em sua maioria com valores de IPTU nada módicos em atraso – à espera de valorização. No Minha Casa, Minha Vida não há estimativas de custos e não há também menção alguma a como enfrentar este problema.
O programa Minha Casa, Minha Vida cumpre a função de política habitacional de forma plena?
Se por plena estamos entendendo o acesso democratizado à terra urbanizada, ou seja, com creches, escolas, lazer, saneamento, transporte e energia, a minha resposta é não. O que temos visto de forma geral é a construção de habitações em áreas sem cidade, em regiões periféricas distantes. E é assim que, além de não cumprir de forma plena, há uma tendência a se privilegiar os interesses da especulação imobiliária, ao mesmo tempo em que se atende de modo subordinado às necessidades dos segmentos sociais de baixa renda e dos sem-teto.
Em que medida ele pode ter provocado um aprofundamento da segregação urbana?
Na exata medida em que o dinheiro jogado no mercado para a construção das moradias resulta em encarecimento da terra e na valorização de áreas já valorizadas. Ora, com imóveis financiados entre 80 e 130 mil reais (e o aumento do teto para 170 mil no início de 2011 é uma prova disso), qual a possibilidade de eles serem, sem uma política de regulação do solo, construídos em regiões centrais? Em especial nas regiões metropolitanas, terras nessa faixa são raras e, em geral, na periferia.
O programa é, assim, parte da contribuição do poder público para a consolidação do padrão periférico de urbanização, através da construção de grandes conjuntos habitacionais nas periferias metropolitanas sem proporcionar a infraestrutura necessária, constituindo a chamada “urbanização sem cidade”, ou seja, a instalação de conjuntos habitacionais em áreas distantes e desarticuladas do conjunto estruturado da cidade, com inexistência ou insuficiência de transporte público e saneamento, perpetuando as características do território segregado.
Em que aspectos o programa mudou desde o lançamento, em 2009, até hoje? Dilma imprime uma nova configuração ao Minha Casa, Minha Vida?
Acredito que não. Prova disso é que houve apenas mudanças na faixa de renda e no teto do valor dos imóveis, sinais da tentativa de adaptação do programa ao aumento do preço da terra. Nos municípios integrantes das regiões metropolitanas de São Paulo, Rio de Janeiro e Distrito Federal, por exemplo, o limite de valor dos empreendimentos para contratação, que era de R$ 170 mil, agora passa para R$ 190 mil. Foi aumentado também o limite, exclusivamente, da segunda faixa de renda do programa, que passou de R$ 3,1 mil para R$ 3,275 mil. A primeira faixa continua com limite de até R$ 1,6 mil.
De modo geral, como pode ser avaliado o Plano Nacional de Habitação do governo PT (dois mandatos de Lula e o de Dilma)? O que marca a gestão do PT em relação à política de habitação?
No que diz respeito à desconcentração do déficit habitacional nas faixas de mais baixa renda, não houve avanços. O que ocorreu, e nesse sentido é possível dizer que não houve uma transformação radical do que vinha ocorrendo, foi uma política de não enfrentamento da questão fundiária, que teve como resultado, entre outros, o fortalecimento da especulação imobiliária.
A construção de novas moradias continua ocorrendo sem a garantia da implementação da política de regulação do uso do solo e dos instrumentos previstos no Estatuto da Cidade, de forma a coibir a especulação imobiliária e pressionar pela ocupação dos vazios urbanos. Não houve também redução da burocracia na implementação dos empreendimentos habitacionais e maior rapidez nos procedimentos de contratação, início e liberação das obras.
Por fim, não foi promovido o acesso à terra urbanizada para as populações de baixa renda, fomentando programas e processos de regularização fundiária, especialmente aqueles em áreas já reconhecidas como ZEIS (zonas especiais de interesse social) pelos Planos Diretores Municipais. Não tendo sido priorizadas, desse modo, as famílias com renda familiar de 0 a 3 salários mínimos, que é a faixa onde se concentra 90% do déficit habitacional.
Qual foi a importância do Minha Casa, Minha Vida, quando do seu surgimento, em relação à minimização dos impactos da crise econômica internacional de 2008 sobre o emprego no Brasil?
A criação do programa aqueceu a construção civil e os setores a ela ligados, relativizando o aumento do desemprego, haja vista que o setor da construção civil emprega um número considerável de trabalhadores e utiliza materiais de diferentes ramos industriais. O programa impactou também o PIB e aumentou a geração de postos de trabalho no setor, atingindo a cadeia produtiva da construção civil de modo geral, bem como incentivando postos formais de trabalho com carteira assinada.
Mas é preciso salientar a permanência de péssimas condições de trabalho em canteiros de obras por todo o país. O programa desenvolveu-se sem garantias sobre questões salariais ou sobre o tipo de contrato de trabalho que seria adotado: as grandes construtoras e empreiteiras têm terceirizado e subcontratado serviços sem capacidade de fiscalizá-los, reafirmando uma tradição de desrespeito aos direitos básicos do trabalhador.
Como são as casas/apartamentos construídos pelo Minha Casa, Minha Vida e como é feito o financiamento?
As casas para a população de baixa renda têm, em geral, sala, cozinha, dois dormitórios e área externa com tanque. Possuem 32 metros quadrados e os apartamentos 37 metros quadrados. São revestidas de alvenaria e forro de laje de concreto, madeira ou PVC. A cobertura da casa tem telha cerâmica sobre estrutura de madeira ou metálica. As janelas são de ferro ou alumínio e as portas de madeira. As casas e apartamentos foram configurados a partir de um modelo pré-determinado do grupo doméstico, isto é, a família nuclear.
Com relação ao tipo de financiamento, o programa prevê o seguinte direcionamento: para famílias com renda de até 3 salários mínimos, haverá subsídio integral mais isenção do seguro obrigatório (que geralmente responde por até 37% do valor da prestação do financiamento); no caso das famílias com renda entre 3 e 6 salários mínimos, haverá aumento do subsídio parcial do financiamento com redução dos custos do seguro e de acesso ao Fundo Garantidor (que foi criado para reduzir os riscos do financiamento, já que pode ser utilizado para refinanciar parte das prestações caso a família perca renda durante o período do contrato); já para as famílias com renda de 6 a 10 salários mínimos, o plano prevê estimular a compra através de redução dos custos do seguro somado ao acesso ao Fundo Garantidor. As prestações garantidas por este Fundo dividem-se dessa maneira: de 3 a 5 salários mínimos, 36 prestações; de 5 a 8, 24 prestações e de 8 a 10, 12 prestações.
As prestações mínimas são de R$ 50,00 por mês, podendo comprometer 10% da renda para quem recebe até 3 salários mínimos (em agosto de 2012 as prestações passaram a R$ 25,00 por mês, e o governo passou a pagar 95% do valor da unidade); para renda entre 3 e 6 salários, comprometimento de 20%. A taxa de juros prevista é de 5% a 6% ao ano e é prevista também a redução dos custos de registro de imóveis. Ele será gratuito para renda familiar de até 3 salários mínimos; haverá um desconto de 90% para renda familiar de 3 a 6 salários mínimos e um desconto de 80% para renda de 6 a 10 salários mínimos.
O direcionamento dos recursos é feito através de fundo na Caixa Econômica Federal, banco responsável pela análise dos projetos que serão apresentados pelas construtoras. ]
O que há de novo e de velho no plano nacional de habitação proposto por Lula em 2009? Há algum paralelo na história do país que pode ser usado aqui para fins de comparação (como o Banco Nacional de Habitação - BNH, por exemplo)?
O plano de 2009 prevê, por exemplo, priorizar a população de baixa renda, mas a previsão não se complementa com a criação de mecanismos para tornar isso possível. Nesse sentido, pelas medidas anunciadas, é possível considerar que há semelhanças com o que ocorreu no período de vigência do BNH. Em primeiro lugar, como enfatizam alguns urbanistas, o problema da política habitacional desde o BNH é que ela é pensada em termos de acesso a crédito e a financiamento, isto é, a dar condições para as pessoas adquirirem no mercado a mercadoria habitação.
O problema que persiste é que para a população onde se concentra o déficit, isto é, na faixa de renda de até 3 salários mínimos, a política de financiamento sozinha não viabiliza o acesso à moradia, já que se trata de uma população que não apresenta garantia de emprego e renda, ou seja, é insuficiente pensar política habitacional descolada de políticas de emprego, regularização fundiária, reforma agrária, etc.
Além disso, assim como aconteceu com o BNH, não existe controle efetivo dos recursos pelas classes populares e pelos movimentos sociais, nem transparência nas informações. Também os movimentos populares não têm autonomia no direcionamento das obras. Não há nenhum mecanismo no plano que imponha ou viabilize a participação popular sobre as decisões ou o controle social sobre os recursos.
Dessa forma, qual é a estratégia federal para reverter a concentração fundiária, para promover a reforma agrária, para barrar a valorização imobiliária e para promover um desenvolvimento regional? Uma política habitacional que considerasse esses fatores traria, aí sim, algo de novo.