Falta de engenheiros clínicos agrava problemas com equipamentos médicos
São 6,5 mil hospitais no país e apenas cerca de 2 mil profissionais especializados na gestão tecnológica da área de saúde, alerta o presidente da ABEClin, Alexandre Ferreli. Ele defende a regulamentação da carreira, com grande demanda reprimida
Ventiladores danificados e fora de uso, compra de respiradores inadequados ou por preços muito altos são alguns dos problemas enfrentados por hospitais, que poderiam ser evitados com a atuação do engenheiro clínico, responsável pela gestão tecnológica de equipamentos de saúde. Para um total de 6,5 mil unidades hospitalares do país, há cerca de 2 mil profissionais com essa formação, segundo estimativa de Alexandre Ferreli, engenheiro eletrônico, mestre em Engenharia Biomédica com especialização em Engenharia Clínica, presidente da Associação Brasileira de Engenharia Clínica (ABEClin). Uma evidente demanda reprimida.
“Quando começou a pandemia de Covid-19, se tivéssemos a engenharia clínica reconhecida e fortemente atuante, teríamos nos preparado melhor, por meio da manutenção adequada e do planejamento para aquisição dos equipamentos médicos”, afirmo Ferreli, durante o programa Conecte-se, transmissão ao vivo promovida pelo Sindicato dos Engenheiros no Estado do Rio de Janeiro (Senge RJ), na última quarta-feira (27), no YouTube. A conversa foi conduzida pelo engenheiro agrônomo Jorge Antônio (à dir., na tela abaixo), diretor do Senge RJ, que é também coordenador-adjunto do Fórum Estadual dos Engenheiros Agrônomos (Feea-RJ), integrante da coordenação-executiva da Conferência Livre Estadual de Meio Ambiente e Agricultura (CLEMAARJ 2020) e conselheiro do Conema.
Um grupo de trabalho formado por representantes dos Ministérios da Saúde e da Economia, da ABEClin, de montadoras e de outras associações, recebeu 3.313 ventiladores (números até o dia 29 de maio) de hospitais públicos, dos quais 1.131 foram recuperados para atender à linha de frente no combate à covid-19, contou Ferreli. A iniciativa é da maior importância porque, conforme noticiado pela mídia, tem havido a aquisição de uma grande quantidade de equipamentos inadequados para uso em pacientes vítimas do novo coronavírus, e compras muitas vezes com valor inflacionado, tanto de novos como de usados (cujo comércio só é permitido com um selo de reforma do fabricante). Os preços desses ventiladores podem alcançar R$ 200 mil ou mais.
De acordo com o presidente da ABEClin (na tela, à esq.), há no momento um aumento atípico na procura por engenheiros clínicos, uma demanda temporária de seis meses para técnicos e engenheiros no Rio. “Terminada a pandemia”, disse, “não consigo avaliar o que vai acontecer, mas há uma clara demanda reprimida, porque a maior parte dos hospitais trabalha com a quantidade de técnicos inferior à necessária, sem engenheiros clínicos nos seus principais hospitais.” Essa carência, segundo ele, deriva “da falta de entendimento, que persiste por parte dos gestores hospitalares, de que a engenharia clínica não é um custo, mas um seguro,e um investimento.”
Medidas relacionadas à regulamentação da carreira, a maior fiscalização junto aos hospitais, a normatização e legislações estaduais e municipais voltadas à gestão dos equipamentos médicos poderão aumentar e consolidar a presença desses profissionais dentro das unidades hospitalares, afirmou Ferreli. A engenharia clínica visa fazer a gestão tecnológica na saúde, para garantir o uso seguro, o melhor desempenho e o planejamento de todo o ciclo vida do equipamento -- da compra até o descarte e a identificação de novas tecnologias para substituí-lo.
Ferreli destaca a dependência intrínseca da medicina atual frente à tecnologia. E tecnologia é engenharia, que não pode mais estar fora das unidades de saúde -- engenheiros clínicos e também mecânicos (para cuidar de caldeiras, elevadores, etc.), elétricos, civis. “Por exemplo, uma ressonância magnética, sem um bom aterramento, pode vir a ter um ‘quench’ (processo que vai custar pelo menos R$ 300 mil e alguns dias de equipamento inoperante) . É muito importante a integração entre as diferentes modalidades de engenharia necessárias em um serviço de saúde. Um equipamento de grande porte bem instalado, dificilmente dará defeito; gera economia para o hospital e benefício e segurança para o usuário.”
Um estudo desenvolvido por Ferreli junto a outros colaboradores constatou que as obras de hospitais atrasaram por erros cometidos durante a construção ou por mudanças nos projetos, que exigiram retrabalho. O resultado eram aumentos de 37% no custo e em média de 12 meses nos prazos de entrega. Gasto que um engenheiro clínico, acompanhando o planejamento e o desenvolvimento do projeto, teria evitado.
Os engenheiros clínicos também são preparados para cuidar de questões regulatórias, normas de procedimentos, em hospitais, empresas ou no governo. No caso dos hospitais de campanha, por exemplo, poderiam indicar quais os equipamentos necessários, as melhores formas de aquisição, os critérios a que devem atender, como serão aproveitados depois da pandemia, se haverá disponibilidade de peças de manutenção, e uma série de problemas que a gestão da tecnologia poderia ter respondido e minimizado.
Regulamentação profissional
A RDC (Resolução de Diretoria Colegiada) nº02, da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), de 2010, diz que as unidades de saúde são obrigadas a ter gestão tecnológica de equipamento e de infraestrutura, mas não especifica qual profissional fará isso, embora estabeleça que ele deve estar regulamentado em conselho de classe. Nesse sentido, Ferreli acredita que o sistema Confea/CREA deveria defender a explicitação do engenheiro clínico para o posto, junto à agência, e encontrar uma forma de reconhecimento oficial da carreira. As legislações estaduais e municipais também deveriam, na sua opinião, exigir que os hospitais tenham engenheiros clínicos ou departamentos de engenharia clínica. A pressão junto ao Legislativo, contudo, em quaisquer níveis, afirmou, depende da mobilização intensa dos engenheiros.
Atualmente, a formação em engenharia clínica é feita por meio de curso de especialização. Com exceção de um curso no Rio Grande do Sul que aceita somente engenheiros, as demais oferecidas no país estão abertas a profissionais de qualquer área. Ferreli observa, contudo, que somente o engenheiro tem atribuição e legitimidade para atuar em Engenharia. Segudno ele, se fosse criado um curso de graduação em Engenharia Clínica, o sistema CONFEA/CREA reconheceria de imediato a carreira. Os associados da ABEClin, porém, manifestaram-se contrários a essa hipótese em virtude de cursos em Engenharia altamente especializados limitarem o profissional a determinados nichos de mercado. “Segundo o consenso de nossos associados, o ideal, do ponto de vista do mercado”, diz o presidente da ABEClin, “é ter formação em uma Engenharia clássica (que permite um amplo leque de opções) e especializações para determinados nichos de mercado. Estamos negociando uma solução para o seu reconhecimento, mesmo como especialização.”
Há dois anos, uma fiscalização feita pelo CREA-SP nos hospitais de São Paulo concluiu que nenhum deles estava totalmente dentro do padrão no que se refere à engenharia. “Foram orientados a fazer mudanças e começaram a contratar engenheiros clínicos, mecânicos, etc.”, lembrou Ferreli. “Com a fiscalização adequada, melhora muito a segurança do paciente e a qualidade dos serviços nos hospitais.”
O presidente da ABEClin ressalta que o Conselho Federal de Biomedicina publicou uma resolução recente (CFBM nº 308, de 27/6/2020), que dispõe sobre atos do profissional biomédico com habilitação em gestão das tecnologias em saúde, e autoriza biomédicos, mediante realização de curso de especialização, a se responsabilizarem pela gestão de tecnologia. “Já vi anúncios em São Paulo, procurando especialistas em equipamentos médicos, com formação em Engenharia com especialização em engenharia clínica, ou engenheiro biomédico [o profissional que atua no desenvolvimento dos próprios equipamentos médicos] ou biomédicos”, contou o presidente da ABEClin, que enviou carta alertando os presidentes dos CREAs e do Confea (Circular 02/2019 de 30/06/2019), ainda sem retorno. “É importante que a gestão tecnológica seja feita por pessoas preparadas, que somos nós, os engenheiros.”
Para o diretor do Senge RJ, Jorge Antônio, deve-se promover a reunião entre os vários conselhos profissionais envolvidos na questão para fortalecer a engenharia clínica de forma amigável na saúde. “Medicina, Engenharia e outras que atuam na área de saúde precisam se articular para evoluir na construção dessas pontes, de modo que, no momento seguinte à pandemia, as pessoas entendam a relevância do exercício profissional do engenheiro clínico.” Nesse sentido, Ferreli lembrou, ainda, o alto número de incêndios em hospitais em 2019: “Onde estava o gerenciamento de risco para retirada de pacientes, a manutenção, coisas pelas quais o engenheiro clínico é responsável?”
A especialização em engenharia clínica leva de dez meses a um ano e meio, com noções de conhecimentos de saúde -- anatomia, bioquímica, fisiologia --, para entender a linguagem dos médicos; aulas de gestão; e uma parte específica sobre o funcionamento dos equipamentos, incluindo manutenção. No Rio de Janeiro, está disponível no Centro de Estudos do Hospital Albert Einstein e no Hospital Central da Aeronáutica, que ministra na capital carioca o curso do Inatel, instituição de Minas Gerais.
Democratização do equipamento usado
Além da consistência na gestão tecnológica, Ferreli defende a democratização dos próprios equipamentos. Ele apoia movimento que quer mudar a RDC (Resolução de Diretoria Colegiada) nº 25, de 2011, da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que atualmente não permite a comercialização nem a doação de equipamentos usados.
Os grandes hospitais, disse o presidente da ABEClin, costumam trocar seus parques de equipamentos a cada dez anos, em busca de maior produtividade, mas os equipamentos dispensados poderiam servir por ainda mais dez ou quinze anos. “De acordo com a RDC, esse equipamento antigo, em ótimo estado, só pode ser comercializado após reforma do fabricante. Sem esta reforma, o seu destino será o descarte como sucata; não poderia ser doado para hospitais mais pobres, nem vendido para amortizar a compra de um novo. Uma ressonância magnética nova pode custar US$ 1 milhão. Numa cidadezinha do interior, onde não existe demanda ou retorno do investimento a longo prazo, seria melhor comprar um usado, por R$ 300 mil para minimizar os riscos do investimento.”
Além da ABEClin, integram o movimento pela alteração na regra relacionada a equipamentos usados o Instituto Brasileiro de Equipamentos Médicos (Ibem) e várias outras entidades. O engenheiro clínico, capaz de atestar em laudo as boas condições do equipamento usado, responsabilizando-se pelo seu uso, tem um papel chave na mudança da RDC.
Ferreli também citou a dificuldade de acesso a informações dos equipamentos para manutenção e reparo. Na Europa e nos EUA, existe o movimento Right to repair (direito ao reparo/conserto), e facilidade em comprar cursos, ferramentas e outros itens necessários à manutenção. No Brasil, são os ex-funcionários dos fabricantes, em empresas terceirizadas, que treinam outros profissionais (ou os enviam para treinamento no exterior). Uma iniciativa relevante, em virtude da extensão territorial do Brasil e da dificuldade dos fabricantes em capilarizar o seu atendimento.
A ABEClin, por meio de seus associados, tem conseguido fazer a diferença. A Arkmeds, associada à entidade, disponibilizou seu curso online de Introdução à Manutenção de Ventilador em português e espanhol. Através da rede internacional de Engenharia Clínica da qual a ABEClin faz parte, todos os profissionais atuantes em engenharia clínica da América Latina e Espanha iniciaram o curso, gerando mais de 5 mil acessos instantâneos. “O Brasil tem uma liderança importante na engenharia clínica internacional”, afirmou Ferreli.
- Clique para assistir a íntegra a conversa com Alexandre Ferreli, presidente da ABEClin, no canal do Senge RJ no YouTube
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