Dieese analisa impacto do caso Americanas para trabalhadores e sistema financeiro
Síntese Especial publicada pela instituição aponta riscos de demissões, inclusive no setor bancário, e piora nas condições de crédito para pessoas físicas e jurídicas, com efeito dominó sobre o conjunto da economia.
Entre empregos diretos e indiretos, a atividade econômica das Americanas – envolvida em suspeita de subnotificação contábil de dívidas da ordem de R$ 20 bilhões – mobiliza cerca de 100 mil postos de trabalho, razão por que é preciso uma resposta rápida que preserve esses trabalhadores e trabalhadoras. O alerta é do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), que publicou, em 1º de fevereiro, uma Síntese Especial para debate intitulada “O caso das Americanas S.A. e potenciais impactos para os trabalhadores e o sistema financeiro brasileiro”. O estudo destaca, entre outros pontos, que mais da metade dos empregados nas principais operações são mulheres, e, do ponto de vista da cor, declaram-se pretas(os) ou pardas(os).
“O cenário de recuperação judicial traz a necessidade de se compreender a extensa cadeia produtiva que envolve as Americanas, empresa presente em todo o país, com mais de 2 mil fornecedores”, afirma o texto. “Em especial, é necessário agir de forma rápida e transparente para preservar a atividade econômica e proteger os mais de 44 mil funcionários do grupo e os empregos indiretos, que, segundo estimativas, juntos representam mais de 100 mil trabalhadores.”
Os impactos no sistema financeiro incluem, de acordo com o Dieese, riscos de cortes nas instituições bancárias e endurecimento das condições de crédito, uma vez que os empréstimos feitos às Americanas cobrem praticamente todos os bancos importantes do país.
“É urgente que sejam articuladas ações para apuração das responsabilidades, estabelecimento de total transparência e diálogo tripartite no sentido de garantir a manutenção dos postos de trabalho e dos direitos trabalhistas”, reforma o documento do Dieese, cujos principal teor republicamos abaixo.
O tamanho do estrago
Uma das maiores empresas do varejo brasileiro, a Americanas S.A. (Americanas) divulgou, em 11 de janeiro de 2023, Fato Relevante ao mercado e aos acionistas para informar a identificação de inconsistências nas demonstrações financeiras de exercícios anteriores, inclusive 2022, estimadas em cerca de R$ 20 bilhões.
Basicamente, uma subnotificação contábil da dívida bancária melhorou “artificialmente” os indicadores de endividamento, desempenho e patrimônio das Americanas, garantindo que a empresa tivesse acesso a melhores condições de crédito (em termos de volume de empréstimos concedidos, prazos e juros cobrados) do que ocorreria se a contabilização tivesse sido realizada de maneira correta. A reclassificação das contas poderá, portanto, gerar modificações importantes nos cálculos e demonstrativos da empresa dos últimos anos e deve indicar a necessidade de aporte financeiro por parte dos acionistas, para fazer frente ao novo cenário de endividamento das Americanas
As Americanas alegam que houve contabilização inadequada das chamadas operações de “risco sacado”, que ocorrem quando uma instituição financeira fornece crédito para uma empresa adquirir produtos de fornecedores. As Americanas tomavam empréstimos dos bancos para fazer compras à vista, fazendo dívidas sobre as quais incidem juros. Na contabilização de parte das operações, nos últimos anos, os valores não foram inseridos na conta de dívida bancária da empresa e, sim, na conta de fornecedores, como se não houvesse intermediação da instituição financeira no processo. Essa seria a fonte das alegadas inconsistências contábeis, que precisariam de reclassificação, provavelmente com republicação de balanços da empresa de anos anteriores.
Após a divulgação das inconsistências, o valor das ações da empresa na Bolsa de Valores caiu e agências de classificação de risco, como Fitch, S&P e Moody’s, rebaixaram as notas de crédito das Americanas - o que ocorreu novamente após o pedido de recuperação judicial da empresa, em 19 de janeiro.
O grupo Americanas S.A. atua em diversos segmentos, com foco no comércio varejista, e combina atividades físicas, como lojas de ruas e de shoppings, e armazéns de e-commercee plataformas digitais. Além da marca Americanas, que engloba as lojas próprias, segundo dados do 3º trimestre de 2022, o grupo detém negócios como:
- Hortifruti Natural da Terra, maior rede varejista especializada em frutas, legumes e verduras do país, com 79 lojas em na região Sudeste (RJ, SP, MG e ES);
- Vem Conveniência, no ramo de franquias, criada a partir de uma joint venture entre a Vibra Energia S.A. (antiga BR Distribuidora) e a Americanas S.A., cada uma com 50%. São 1.300 lojas de conveniência, das quais 60 lojas são da marca Local, operada pelas Americanas, e 1.240 lojas estão em postos de combustíveis, com a marca BR Mania;
- Grupo Uni.co, adquirido pelas Americanas em 2021, atua no varejo especializado em franquias e é dono das marcas Puket, Imaginarium, MinD e Love Brands, com 419 lojas.
- Ame Digital, plataforma financeira da Americanas S.A., com cerca de 30,5 milhões de contas abertas, que, em outubro de 2022, foi autorizada pelo Banco Central a operar como instituição de pagamentos. Esses negócios concentraram-se em 3.601 lojas de diferentes formatos, praticamente metade delas composta por lojas próprias das Americanas, no formato tradicional e express (1.800 lojas ou 49,9%). Vale destacar também as franquias, como as do Grupo Uni.co e da BR Mania, que, juntas, representam 46% do total.
Segundo o Relatório Anual de 2021, quase metade das lojas próprias (1.937) estava no Sudeste (49,6%). As demais, distribuídas da seguinte forma: Nordeste, 22,6%; Sul, 10,4%; Norte, 9,0%, e Centro-Oeste, 8,4%. A empresa tem presença, com lojas próprias, em todos os estados brasileiros e em 938 municípios. Ainda em 2021, o grupo Americanas possuía 25 centros de atendimento/distribuição em 11 estados e seis sedes administrativas, cinco delas no município do Rio de Janeiro e uma na cidade de São Paulo. O total das operações movimentou, naquele ano, mais de 2 mil fornecedores, principalmente dos segmentos têxtil, alimentício, de papelaria e de utilidades domésticas. Considerando as principais atividades, em 2021, a empresa tinha 44.481 funcionários em todo o país. A maior parte estava empregada na região Sudeste (61,2%), e, em seguida, no Nordeste (19,9%), Sul (7,6%), Centro-Oeste (5,7%) e Norte (5,6%).
Mais da metade dos empregados nas principais operações, em 2021, eram mulheres: 53,6%, ou quase 24 mil trabalhadoras. Desse total, 1.230 foram mães em 2021, ano em que tiraram licença-maternidade, segundo Relatório Anual da empresa. Também é importante destacar que a força de trabalho possui um perfil majoritariamente jovem: 75,9% dos empregados possuíam menos de 30 anos. E, em relação à cor/raça, 42,1% dos funcionários foram declarados como pardos e 16,9%, como pretos.
Com relação ao tipo de vínculo, a Americanas S.A. declarou que 84,7% do corpo de funcionários era considerado permanente e outros 15,3% estavam com vínculos temporários. Vale destacar que a presença de temporários era bem maior entre as mulheres (17,8%), enquanto entre os homens ficava em 12,3%
Possíveis impactos para o sistema
Na lista de credores, enviada pela empresa no decorrer do processo de recuperação judicial, estão alguns dos mais importantes e atuantes bancos do país.
- Deutsche Bank: R$ 5,2 bilhões;
- Bradesco: R$ 4,5 bilhões;
- Santander (Brasil): R$ 3,6 bilhões;
- BTG Pactual: R$ 3,5 bilhões;
- Votorantim: R$ 3,2 bilhões;
- Itaú Unibanco: R$ 2,7 bilhões;
- Safra: R$ 2,5 bilhões;
- Banco do Brasil: R$ 1,3 bilhão;
- Caixa Econômica Federal: R$ 501 milhões
Logo, o primeiro impacto potencial é nos resultados financeiros dos bancos, na medida em que o atraso no pagamento ou mesmo o não recebimento de partes da dívida das Americanas fará com que as instituições financeiras elevem os níveis de provisão para devedores duvidosos (PDD), o que afetará de forma negativa o lucro.
Segundo relatório da XP Investimentos, esse impacto negativo pode ser da ordem de 20 a 30% no caso dos bancos mais expostos, como BTG, Santander e Bradesco e, de cerca de 10%, nos casos de Itaú e Banco do Brasil. O relatório aponta que os níveis de PDD dos cinco grandes bancos de capital aberto podem chegar a cerca de R$ 8 bilhões.
Cenários semelhantes foram observados no setor bancário brasileiro em 2016, na esteira da quebra de empresas em decorrência da operação Lava Jato e, em 2020, em função das incertezas econômicas decorrentes da pandemia de covid-19. Esses eventos alertam para o risco de as instituições financeiras buscarem recompor a lucratividade com base na redução de despesas administrativas e de pessoal, o que pode significar uma intensificação no fechamento de agências bancárias e nova onda de demissões de bancários.
Além dos impactos negativos nos resultados do setor financeiro, é de se esperar, como potencial efeito negativo do caso Americanas, um endurecimento das condições gerais de crédito no país. Primeiramente, porque a própria elevação dos provisionamentos reduz os níveis de capital das instituições financeiras, que são utilizados para definir os patamares de concessão de crédito – quanto menor os níveis de capital próprio dos bancos, menores são as possibilidades de que essas instituições ampliem o crédito de acordo com as regras dos acordos de Basiléia.
Além disso, o próprio cenário de incerteza sobre o que vai ocorrer com as Americanas e a cadeia de fornecedores poderá levar a uma avaliação pessimista dos bancos em relação à concessão de crédito para o segmento corporativo, cenário que pode ser agravado diante do receio de que inconsistências contábeis semelhantes estejam ocorrendo em outras empresas. Inclusive a credibilidade das auditorias independentes, como a PricewaterhouseCoopers, uma das mais conceituadas do mundo e responsável pela revisão das demonstrações da Americanas, da mesma forma, é questionada.
As instituições financeiras apresentam historicamente comportamento pró-cíclico, ou seja, em momentos de incerteza econômica, tendem a adotar comportamento conservador, contraindo crédito, elevando as taxas de juros e aprofundando assim as dificuldades da economia.
O caso Americanas ocorre em momento em que o crédito já perdia força no país. A Pesquisa Febraban de Economia Bancária e Expectativas, de dezembro de 2022, antes de o caso Americanas vir à tona, revela que a expectiva dos bancos era de que a variação do crédito cairia de 14,8%, em 2022, para 8,2%, em 2023.
A perda de fôlego do crédito está vinculada ao cenário de elevação das taxas de juros no país, tanto Selic quanto juros bancários, e à perda de dinamismo da economia brasileira, observada desde o segundo semestre de 2022, o que causa aumento da inadimplência no segmento do crédito à pessoa física, devido a níveis recordes de endividamento da população. Os principais motivos do endividamento foram a alta da inflação, principalmente a de alimentos, e a deterioração do mercado de trabalho e da renda das famílias.
A essas complicações agora soma-se o caso das Americanas, com impacto no crédito para pessoa jurídica e, consequentemente, possibilidade de se tornar novo ingrediente para dificultar a recuperação econômica do país. Além disso, as instituições financeiras podem ser afetadas indiretamente, uma vez que, na relação de credores, há o envolvimento de diversas cadeias produtivas, especialmente ligadas aos setores de alimentos, eletrônicos e tecnologia que, de certa forma, também são agentes que operam no sistema financeiro.
As informações ainda são preliminares e faltam dados mais concretos para avaliar por quais caminhos e em que intensidade o sistema financeiro nacional será afetado pelo caso Americanas. Conforme a divulgação das próximas demonstrações financeiras dos bancos e das notas de crédito pelo Banco Central revelarem elementos mais precisos da situação da varejista e das instituições financeiras, poderão ser traçadas análises mais precisas a respeito dos efeitos sobre o sistema financeiro e, mais especificamente, sobre o crédito na economia brasileira. No entanto, diante do quadro apresentado, é possível observar que há extensa rede de credores e fornecedores em torno das atividades das Americanas, milhares de empresas e um contingente estimado em mais de 100 mil trabalhadores empregados, que podem ser impactados ao longo do processo de recuperação judicial.
Confira a íntegra no link:
https://www.dieese.org.br/outraspublicacoes/2023/sinteseEspecial12.html