Desmonte da Eletrobras tem resistência no Congresso e na sociedade civil
Além da MP inconstitucional que tenta acelerar a privatização da estatal, mudança estatutária deixa o Cepel, principal centro de P&D do setor, sem fonte de recursos. Requerimento ao MME pede esclarecimentos.
“O Sindicato dos Engenheiros no Estado do Rio de Janeiro (Senge RJ) vai lutar pela manutenção da Eletrobras e do Cepel como entidades estatais e públicas, por entender que essa é a melhor forma de enfrentarmos os desafios no campo da energia, principalmente a chamada transição para uma matriz energética cada vez mais limpa”, afirma o diretor do Senge RJ Agamenon Oliveira, que também é pesquisador Centro de Pesquisas de Energia Elétrica (Cepel Eletrobras) e professor da UFRJ.
Segundo reportagem da Rede Brasil Atual, líderes da oposição na Câmara pediram ao presidente do Congresso Nacional, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), nesta quarta-feira (24), que devolva a Medida Provisória 1031/21 ao governo. Argumentam que a proposta de privatização da Eletrobras não envolve urgência, requisito previsto pela Constituição Federal para edição de MPs. Além disso, a medida seria flagrantemente inoportuna, uma vez que o país enfrenta uma crise grave de desemprego, com cerca de 70 milhões de brasileiros necessitando de auxílio emergencial, devido à pandemia de covid-19.
A privatização da Eletrobras poderia elevar a conta de luz em até 16,7% num primeiro momento, e aumentar o custo da indústria, das famílias e de toda a cadeia de produção da economia em R$ 460 bilhões por 30 anos, segundo dados de simulações feitas pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), destacados pelo Coletivo Nacional dos Eletricitários (CNE) em nota de repúdio à MP.
No texto, explica que a privatização da Eletrobras pressupõe a descotização de 15 usinas hidrelétricas que vendem energia bem mais barata que o Mercado Livre. “Se essas usinas vendem o MWH entre R$ 40,00 e R$ 60,00, o Mercado Livre vende seu MWH por R$ 200,00 a R$ 800,00”, compara. “As recentes privatizações das distribuidoras de energia elétrica no Brasil tiveram sempre dois efeitos colaterais preponderantes: tarifaço e apagão. As populações dos estados de Goiás, Acre, Rondônia, Roraima, Amazonas, Piauí e Alagoas penam com o descaso na prestação de serviço privatizado. Ainda sobre apagões, como não lembrar do recente episódio sombrio no Amapá, quando uma transmissora de energia privada deixou a maior parte do estado sem luz por mais de 20 dias.”
A tentativa de aceleração do processo de privatização da Eletrobras, na opinião de Agamenon, “é a contrapartida à interferência do governo na Petrobras.” A manobra, segundo ele, visa convencer as forças de mercado de que o programa neoliberal do ministro da Economia, Paulo Guedes, continua de pé, apesar da militarização e intervenção crescentes do governo federal. “Também já sabemos que o BNDES entrou no circuito para fazer a modelagem em nove meses. Tempo necessário para gestar um novo filho do Guedes.”
Antonio Neiva, pesquisador do Cepel e representante sindical no Senge RJ, aponta os riscos da privatização da Eletrobras e da fragmentação do seu sistema integrado, para a qualidade dos serviços de energia e também para a soberania sobre as águas e a segurança hídrica do país. “Há poucas semanas, a CNN publicou a notícia de que a falta de luz no Texas expõe falhas na privatização, citando também o blecaute de 2000 na Califórnia, pelo mesmo motivo. Os recentes apagões no Amapá e no Maranhão mostram a falta de compromisso das empresas privatizadas com seus consumidores e são exemplos que apontam para as consequências da perda de soberania advinda de privatizações no setor elétrico.”
No artigo "Nenhum país que usa energia hidrelétrica privatiza sua produção", o professor da USP Ildo Sauer destaca que a última prioridade do uso da água é a produção de energia elétrica. Antes de chegar às turbinas a água atende a três demandas preferenciais: primeiramente, o abastecimento urbano; depois o sustento animal, a irrigação de lavouras e o lazer. Neiva observa que, atualmente, 63% da energia elétrica vêm de hidrelétricas, e sua gestão envolve o conceito de uso múltiplo das águas, um componente estratégico, crítico e vital para a segurança nacional. Nos Estados Unidos, paradigma do liberalismo econômico, 73% das hidrelétricas são do Estado, 21% delas controladas pelo Exército (veja mais em: https://www.sengerj.org.br/posts/3021) .
Requerimento ao ministro das Minas e Energia sobre o Cepel
A Eletrobras, na verdade, já vem sendo fatiada desde o golpe que afastou a presidenta Dilma Rousseff em 2016. Um lance recente na direção da desestruturação do sistema foi a mudança no estatuto da estatal, em 28 de janeiro. O texto modificado omite as obrigações em relação ao Centro de Pesquisas de Energia Elétrica – CEPEL, que, entre outros ativos, mantém e desenvolve um conjunto de software e aplicativos utilizados por todo o setor elétrico, inclusive pelo Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) para manter a rede funcionando, estudar as necessidades de expansão e a precificação da tarifa.
No mesmo dia da aprovação da alteração estatutária, o deputado federal Glauber Braga (PSOL-RJ) enviou ao ministro de Minas e Energia, almirante Bento Albuquerque, um requerimento de informações sobre os impactos efetivos do novo estatuto. O ministério tem prazo de 30 dias, até o final deste mês, para responder aos questionamentos do parlamentar (leia na íntegra).
O requerimento pede explicações sobre como serão cumpridas as obrigações sociais da Eletrobras, como será a sustentação financeira do Cepel e como se poderá harmonizar o planejamento estratégico da Eletrobras, que prega uma modernidade essencialmente tecnológica, com o descompromisso com o Cepel. “Dependendo das respostas dadas, veremos quais serão os novos passos”, diz Agamenon. “No atual momento, a mudança de estatuto tem uma clara intenção de a Eletrobras ir se desobrigando do Cepel e dos compromissos com sua função social como empresa pública. Aí as implicações para a soberania nacional são enormes.”
Na opinião de Neiva, as alterações têm o objetivo de preparar a empresa para a privatização e são irregulares. “Pela legislação”, diz ele,”a privatização só pode ser feita após a autorização do Congresso Nacional; logo,a mudança de estatuto é ilegal, pois afasta a empresa dos principios para os quais foi criada. Visa favorecer acionistas ou empresas, e não o desenvolvimento da nação, para o qual o setor energético é estratégico.”
Em síntese, a alteração estatutária excluiu o inciso 3° do artigo 5°, que determinava apoio ao Cepel. Com isso, a Eletrobras, fundadora e principal mantenedora do centro de pesquisa, estaria desobrigada de mantê-lo, rompendo uma história de 46 anos. O Cepel ficaria totalmente sem cobertura estatutária na empresa que é sua principal fonte financeira.
“Com a privatização – e não é suposição, a mudança estatutária sinaliza --, os projetos sociais podem ser feitos, desde que o governo pague por eles”, explica Agamenon. “O mesmo raciocínio pode ser aplicado ao Cepel, o que significa que está completamente indefinido o futuro do modelo de sustentação do centro. Uma outra fonte pública de financiamento teria que substituir a Eletrobras, mas não há qualquer informação sobre a possibilidade dessa transição.”
Cortes no orçamento da inovação
Os recursos do Cepel já vêm sendo cortados. Segundo o Relatório da Administração de 2019, naquele ano o orçamento foi de R$ 237 milhões, sendo R$ 194 milhões provenientes das instituições fundadoras. Para 2021, esse aporte foi reduzido em 13%, para R$ 169 milhões, apesar da previsão de R$ 200 milhões em despesas neste ano e do aumento constante da demanda.
“Vale lembrar que o setor elétrico é altamente tecnológico e complexo, e que o mundo todo está vivendo uma grande transição energética, onde os carros elétricos e as novas fontes de energias renováveis trarão grandes mudanças e desafios”, diz Neiva. “Sem tecnologia nacional, vamos depender mais de importação de conhecimentos e pagamentos de royalties.”
Em termos de ativos, o Cepel tem cerca de 35 laboratórios, sendo os de Adrianópolis os que fazem ensaios mais “pesados” em termos de tensão e corrente elétrica. Somente o Laboratório de Ultra-Alta Tensão, o chamado AT5, pode fazer ensaios que vão acima de 1 milhão de volts. Não há similar na América Latina. Ele se destina a fazer estudos e análises experimentais para viabilizar o projeto e construção de grandes linhas com menores perdas de energia. Também está no Cepel uma mão de obra altamente especializada para o setor. “Como avaliar o custo desta perda em termos de soberania?”, questiona Agamenon. “É incalculável. E esse acervo todo pode ser sucateado.”
Neiva lembra que o setor elétrico pode gerar lucros “astronômicos” e que a Eletrobras tem registrado resultados positivos e significativos consistentemente. “Além disso, a estatal tem sustentado programas de Estado importantes para o desenvolvimento da nação, investimento ainda em pesquisa e inovação que podem garantir uma menor dependência tecnológica no presente e no futuro.” Com a mudança no estatuto e a destinação dos lucros exclusivamente aos acionistas, se o governo precisar realizar iniciativas como a de eficiência energética (Procel), que, em 2018, gerou uma economia de aproximadamente R$ 15 bilhões, ou como o Programa Nacional de Universalização do Acesso e Uso da Energia Elétrica – Luz para Todos, que já beneficiou mais de 16,8 milhões de pessoas, precisará pagar à Eletrobras para sua execução. Lembrando que fornecedores privados não levam em conta, nas negociações, nem o retorno social nem o efeito multiplicador dos investimentos para as contas públicas, por exemplo, no aumento da arrecadação.
Segundo Agamenon, o Senge RJ não apenas vai lutar contra a privatização da Eletrobras, como é favorável a um outro modelo de setor elétrico, que privilegie o barateamento das tarifas. “Isso se contrapõe inteiramente ao modelo projetado pelo governo atual, que enxerga a Eletrobras como uma mera distribuidora de lucros para acionistas. Na visão do Senge RJ, uma outra Eletrobras é possível e necessária para impulsionar todo o setor industrial com empresas eficientes e um forte conteúdo nacional, que permita ao país se inserir soberanamente no grande concerto das nações.”