Darc Costa defende conversão da dívida pública em títulos para financiar investimentos
Durante o seminário SOS Brasil Soberano, em Maceió, o engenheiro apresentou seu projeto nacional para destravar o desenvolvimento
O Museu Nacional da UFRJ, cujo acervo de 20 milhões de itens e 200 anos de pesquisas ardeu neste domingo (2), tinha recebido até maio a rIdÍcula soma de R$ 54 mil, para uma necessidade de custeio da ordem de R$ 550 mil. Os cortes brutais de verbas que estão destruindo o patrimônio cultural e científico do país têm sido justificados, de forma geral, pelo ajuste fiscal, num cenário agravado pela Emenda Constitucional 95, conhecida como PEC dos gastos, que engessa todo o gasto público – com exceção do pagamento de juros. Na opinião de Darc Costa, engenheiro civil e estudioso das questões estratégicas do Brasil, que foi vice-presidente do BNDES entre 2003 e 2004, é preciso converter a dívida pública em recursos para investimentos públicos, por meio de debêntures lastreadas em obras de infraestrutura, e destravar o desenvolvimento brasileiro.
A transformação da dívida pública em dinheiro para investimento é um elemento dentro do que Darc defende como um grande projeto para o país. A proposta inclui, ainda, valorizar o salário mínimo e o trabalho, promover escolaridade de qualidade, uma industrialização de fato e uma urbanização moderna. “A partir da Revolução Francesa cada cidadão tem quer ver no projeto do Estado o seu próprio projeto, porque, se isso não acontece, este Estado não está legitimado”, diz. “Então, o país precisa de um projeto. E estamos em um impasse.”
O impasse, diz Darc Costa, resulta da falta de consenso entre os pensadores brasileiros sobre o que seria este projeto de longo prazo para o Brasil. Destaca, nesse sentido, que são os engenheiros, necessariamente, os construtores do projeto. “A Engenharia é a base sobre a qual se estrutura a construção de um país”, afirmou, durante o VI Simpósio SOS Brasil Soberano – A Engenharia e a Soberania Nacional, promovido pelo Sindicato dos Engenheiros no Estado do Rio de Janeiro (Senge-RJ) e pela Federação Interestadual de Sindicatos de Engenheiros (Fisenge), com apoio do Sistema Confea/Crea’s, durante a 27ª SOEA, em Maceió (AL), no dia 23 de agosto.
Entre as premissas do seu projeto, Darc cita o papel relevante da indústria, considerada por ele o motor do desenvolvimento. Apesar de toda a desindustrialização sofrida nos últimos 25 anos, ele ressalta que o país ainda tem a indústria mais completa do Hemisfério Sul e da América Latina. “Na indústria, as inovações se processam de forma muito mais rápida do que nas atividades primárias – agrícolas ou de mineração –. E a inovação é a mola da acumulação: empresas inovam para serem monopolistas, para terem condição de fugir à competição. E a indústria é o espaço onde isso se processa.”
Critica, contudo, o estímulo dado ao segmento metal-mecânico, especialmente o automobilístico, que deu preponderância ao setor na formação do produto industrial brasileiro. “É preciso incentivar setores que formam a moderna capacidade industrial: eletroeletrônico, química fina, biotecnologia, entre outros, de forma a balancear melhor o produto industrial.” Nesses campos, nossas vantagens competitivas incluiriam o grande mercado interno, com capacidade de gerar massa crítica e ganhos de escala, para se permitir a busca do mercado internacional. A essas vantagens Darc acrescenta outras, dinâmicas, resultantes do planejamento da formação de blocos de capital e da ação estruturada do Estado.
Por exemplo, nas áreas de petroquímica e siderúrgica, que funcionam como instrumento importante de alavancagem da economia. “Aliás, não entendo como o detentor das maiores reservas de minério do mundo não é o maior produto do aço – mas a China”, diz Darc. “Isso demonstra que faltou planejamento a partir do final da década de 70.”
Três personagens e tudo para pagar juros
Uma das principais barreiras à retomada do investimento tem sido a enorme dívida pública que, para Darc, poderia ser ela mesma uma solução para o país. “As pessoas não veem que a divida pública pode ser um instrumento de solução do nosso problema”, acredita. “Toda a política econômica recente tem sido no sentido de criar o impossível. Ou seja, criar as condições de se honrar a enorme dívida pública contraída ao longo dos anos e maximizada no último quarto de século.”
Essa expansão da dívida, segundo ele, deriva basicamente da própria formulação tributária presente na Constituição de 1988 – além das confusões resultantes das mais de 94 emendas a ela que vieram depois. “Um orçamento, qualquer que seja, precisa atender a três objetivos: custeio da máquina, orçamento de investimentos, e um orçamento de capital, dedicado a fazer frente às obrigações com empréstimos, juros, etc. Nós construímos um único orçamento onde misturamos tudo, em termos de dotação, tributo, taxa e também em termos de obrigações. O que acontece hoje é que você corta custeio, investimentos, tudo, para para pagar despesas de capital.”
Este modelo teria sido elaborado, na época da Constituinte de 88, por Francisco Dornelles, José Serra e César Maia, conta Darc. “Eram os três personagens que tratavam disso na Constitução; tinha que dar nisso. E hoje, os estados, os municípios e o Estado brasileiro estão quebrados por causa de uma estrutura tributária errada.”
Destravar o desenvolvimento
Para evitar esse escoadouro, o ex-vice-presidente do BNDES defende que os impostos tenham destinação definida para os diferentes orçamentos: aqueles que são voltados para investimentos, os impostos para custeio e aqueles para pagar o serviço da dívida. “Para não deixar que, faltando em um, você tire do outro.”
Essa “enorme e impagável dívida pública”, em vez de se tornar um impedimento ao desenvolvimento da ação estatal – na forma de ajuste fiscal e cortes orçamentários –, deveria, no projeto idealizado por Darc, ser vista como elemento promotor de investimento, pela sua ordenada e planejada alocação na atividade produtiva. “Essa dívida pública é um capital, que está estéril. Ele está sendo rolado, mas pode ser utilizado para fazer obras.”
Segundo Darc, os fundos de pensão detêm 25% da dívida pública, e são entidades que não precisam receber a curto prazo. “A obrigação deles é de liquidez a médio e longo prazo. Se eu crio condições de pegar essa Obrigação Reajustável do Tesouro Nacional (ORTN), que é o elemento da dívida, e transformá-la em debênture para infraestrutura, consigo fazer obra. Desde que eu dê ao detentor da debênture a certeza de que ele vai receber uma taxa maior do que a que recebe na ORTN. Então é possível de ser feito.” Foi o que fizeram em 1933 na Alemanha, quando o Banco Central converteu seus títulos em obrigações junto à indústria alemã e, explica o engenheiro, viabilizou recursos para construir toda a rede de estradas e rearmar o país.
No Brasil, a dívida pública foi se formando com sucessivas desonerações do capital, acompanhadas de uma política econômica que, na avaliação de Darc Costa, não enfrentou as questões do câmbio apreciado, prejudicial especialmente para a indústria, e dos juros escorchantes. “Manteve com isso um errôneo modelo, em que se deixa liberdade para o capital e se pratica a mais alta taxa de juros do planeta. A liberdade e os juros atraem capitais voláteis, que promovem apreciação cambial e perda de competitividade na produção interna.” São recursos externos que ingressam e saem sem controle, transformando o Brasil no que o engenheiro chama de “capital motel”, onde se entra e sai.
Para a construção de um projeto nacional seria preciso, assim, um câmbio competitivo, controlado, e uma nova política monetária que traga os juros ao nivel internacional, além da substituição da lógica de atração da poupança externa, pela enorme poupança interna que seria liberada na conversão da dívida pública em investimentos.
Distribuição de renda x aristocracia jurídica
O combate à desigualdade, outro eixo do projeto nacional elaborado por Darc Costa, deve ser feito por meio de fatores internos, segundo ele, mais permanentes do que as políticas sociais, embora essas também sejam relevantes. “A valorização constante do fator trabalho no processo produtivo tem que ser buscada através de uma política que valorize o emprego, o Salário Mínimo e as relações trabalhistas.”
O que não se observa atualmente, afirma: “O Supremo Tribunal Federal votou o aumento dos salários dos ministros em 16,8%, e o salário mínimo foi aumentado em 1,8%. Alguma coisa está errada.” E essa coisa, explica, é o poder excessivo do Judiciário, lugar originalmente destinado à aristocracia.
“Se você analisar a Constituição vai entender por que. Diferente de tudo o que foi concebido como modelo regulatório numa democracia por Montesquieu, que já não era bem uma democracia, mas uma República (porque a democracia foi Rosseau quem a pensou), Montesquieu pensou em garantir que a aristocracia tivesse um papel no governo. E para isso criou os três poderes, onde o Judiciário, na visão dele, era o lugar da aristocracia, porque a burguesia e o povo não participariam de lá. Mas criou uma ideia paralela a essa, que era o controle de um poder pelo outro. Pois bem, na Constituição brasileira, o Poder Judiciário se auto-regula. Ninguém controla o Judiciário, porque é uma Constituição feita por advogados para advogados. Voltamos a ser o país dos bacharéis – como antes de 1930.” Há, contudo, uma diferença: “Naquela época eram duas oligarquias que dominavam o país. A oligarquia mineira e a paulista. Hoje reduzimos isso só para a oligarquia paulista: de um lado, falam os da Faria lima [avenida Faria Lima, centro financeiro de São Paulo]; e de outro, os do ABC. Estamos entregues à oligarquia paulista. E quando interessa, eles se compõem.”
Para valorizar o trabalho, distribuir renda, Darc defende um sistema educacional que garanta, no mínimo, uma década e meia de escolaridade à população. E que vocacione a maior parte dos formandos para as Ciências Naturais e a Engenharia. “A reformulação do currículo e a valorização do magistério têm que ser pilares desse modelo de educação em massa. Montar uma economia não dependente de mão de obra barata, para ser bem sucedida.”
Em paralelo, o Brasil deveria continuar a integrar seu território, com outros modais além do rodoviário – “metade do território brasileiro não tem acesso de logística adequado” – , e promover ações na infraestrutura social (áreas de saúde, educaçaõ, segurança e saneamento) e na infraestrutura econômica (energia, transporte, comunicações), que requerem planejamento de longo prazo e elaboração detalhada de projetos de engenharia. Um esforço de planejamento que se encerrou no país quando, na crise do México, em 1982, o FMI exigiu o fim dos Fundos Setoriais.
“Estamos caminhando progressivamente e por muito tempo na situação da mão pra boa. Não vemos mais adiante. Vivemos num tempo em que nem projeto de engenharia se faz. Começa-se uma obra sem projeto de engenharia. Nós estamos vivendo isso.”
Foto: Art Imagem Fotografia
Fonte: Movimento SOS Brasil Soberano
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Fonte: Movimento SOS Brasil Soberano